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Lockdown no Pará: “todas as domésticas falam que a gente morre sem ser reconhecida”

Via: Alma Preta

Filhas das empregadas comentam sobre a decisão que classifica o trabalho doméstico como atividade essencial; Decretos representam a reedição da base de relações escravocratas , diz professora.

Texto / Flávia Ribeiro | Edição / Simone Freire | Imagem / Arquivo Agência Brasil

Angústia e preocupação são os sentimentos dos filhos e filhas das empregadas domésticas no estado e na capital paraense, onde o decreto de lockdown, publicado na terça-feira (5), colocou o serviço doméstico entre os setores essenciais, ou seja, que têm permissão para continuar operando durante as restrições de circulação na região por conta da pandemia do Covid-19, o novo coronavírus.

“Acreditava que o decreto iria reconhecer a situação que as empregadas domésticas enfrentam e, portanto, permitir que elas ficassem em casa. Pensei na minha mãe, que precisa se expor no trajeto até a casa da patroa e que no trabalho estaria exposta com outros trabalhadores que prestam serviços na casa. Senti revolta, porque penso que ele [decreto] será usado como argumento para que ela retorne ao trabalho”, desabafa a estudante Maria Oliveira*.

A mãe, empregada doméstica, está de férias, mas terá que retornar ao trabalho brevemente. Idosa, ela tem 65 anos e tem ido ao trabalho à pé para evitar a exposição dentro dos ônibus. “Como ela não tem carteira assinada, é muito difícil cobrar que os direitos sejam respeitados. Me sinto de mãos atadas, e contava com esse decreto para que ela estivesse respaldada para não retornar”, lamenta a estudante.

A mãe de Maria trabalha como empregada doméstica há cinco anos, quando o marido faleceu e teve que assumir sozinha as contas da família. O esforço no trabalho possibilitou que a filha cursasse o ensino superior sem trabalhar. “Por mais que eu diga com orgulho que sem ela eu não estaria quase me formando, carrego um peso de compreender que ela se expõe à essa sobrecarga por mim, pelos meus estudos”, fala Maria, que é estudante de Psicologia em uma universidade privada, por meio do Prouni.

A primeira a ficar doente

Ela comenta que tentou conversar com a mãe para trabalhar no seu lugar, mas houve o receio de que os empregadores não aceitassem. A estudante diz que deposita nos estudos a esperança de mudar a situação da família.

“Eu encaro como uma responsabilidade ainda maior de me qualificar enquanto profissional. Em dias que eu me via não dando conta de alcançar as demandas da faculdade, um sentimento muito forte em mim era de precisar dar conta, por ter consciência de tudo o que minha mãe enfrentava para me manter lá. Desde os recursos financeiros, até o apoio emocional incondicional. Essa experiência me convoca de várias formas a valorizar essa possibilidade”, destaca Maria, revelando que a mãe pede que, depois da graduação, ela faça atendimentos gratuitos para quem não pode pagar.

Cada dia de trabalho da mãe, representa muita preocupação para Iara Borges*. Sua mãe não foi dispensada do trabalho, mesmo em uma casa onde vários moradores estão em quarentena por suspeita da Covid-19. “A primeira a ficar doente foi a neta do patrão que teve contato com uma pessoa confirmada, no trabalho. Depois foi a mãe dela e a filha, e por último, o patrão. Eu perguntei como ela está se sentindo, disse que sentiu uma febre à noite mediana e está tossindo muito. Confesso que estou preocupada”, fala.

Iara destaca a precariedade da condição da mãe e de outras pessoas, na mesma situação. O momento da pandemia traz a incerteza da sobrevivência econômica. “Então, a minha mãe, se ficasse em casa, com certeza não receberia e também não teria direito ao auxílio emergencial porque tem a carteira assinada. Eu sinto muito que ela esteja arriscando sua vida desse jeito, não quero pensar em precisar ir para o hospital com ela, do jeito que o sistema está sobrecarregado. Então, agora é só orar”, resigna-se.

“Casa de família só é bom para o patrão”

Além da mãe de Iara, uma tia também trabalha como diarista. O trabalho doméstico é uma realidade que abrange várias pessoas da mesma família. Luciana Silva, por exemplo, já foi diarista e hoje é cuidadora de um idoso. Sua mãe, trabalhou a vida inteira como empregada doméstica. Quando os casos da doença começaram a ser registrados, a patroa ainda exigia que ela trabalhasse.

“Minha mãe ficava muito preocupada porque já sofre com a asma e tem falta de ar. Foi preciso fazer pressão para que ela fosse afastada. Agora, ela está de férias, mas ainda não recebeu porque a patroa está em casa e sem receber também”, afirma.

Ao contrário da mãe, Luciana continua trabalhando. Aos 34 anos de idade, trabalhando desde os 18 anos, ela tem dois filhos e fala que se esforça para que eles tenham mais oportunidades. “Eu não me preocupei em estudar, meu foco era trabalhar e sair de casa. Consegui. E agora quero me desenvolver, por isso estou no último ano de Pedagogia. O que passo para os meus filhos é ‘estudem’. Aproveitem a oportunidade que estou dando. Casa de família só é bom para o patrão. Todas as domésticas falam que a gente morre sem ser reconhecida”, comenta.

A jornalista Catarina Barbosa sabe bem o que é estudar também para atender a uma necessidade da família. “Por um momento, eu cheguei a duvidar de mim. Estudei a vida inteira em escola pública. Fazia vestibular, mas não conseguia passar. Foram quatro tentativas até conseguir passar. Sempre tenho como inspiração a minha mãe, estou dando continuidade a uma vontade dela. Ela sempre quis ser professora, mas precisou trabalhar desde cedo. Eu tenho um orgulho muito grande do que ela me ensinou. Até a quarta série, ela estudava comigo todos os dias. O que ela não sabia, aprendia para me ensinar e também me fazia estudar bastante para poder ensinar para ela e quando eu conseguia isso, era a prova de que eu realmente havia aprendido”, relembra.

Catarina

Nascida em Chaves, no arquipélago do Marajó, a mãe da jornalista começou a trabalhar aos 12 anos, em Macapá. “Ela não recebia salário e desistiu de ficar lá porque o dono casa começou a assediá-la”. Aos 17 anos, veio trabalhar em Belém, em uma casa onde ficou por anos. A tia da jornalista também veio para a mesma casa. Quando engravidou pediu as contas, mas a empregadora manteve o contrato de trabalho e a jornalista cresceu chamando de avó para ela.

Aos 56 anos, ela continua como doméstica, mas foi afastada do trabalho e continua sendo remunerada. “Eu cresci com a minha mãe cobrando muito a questão de estudar. A minha avó teve três filhos: uma médica, um agrônomo e um farmacêutico. A médica é a minha madrinha e o agrônomo é padrinho. Dentro da minha exclusão, eu tive privilégios e me cerquei de mulheres que ensinaram o melhor dentro do que podiam. Como a minha madrinha estudava muito, eu estudava com ela. A minha mãe reforçava que nós somos pobres e pobres só vencem na vida, estudando. E ela cobrava muito”, lembra.

Ao contrário das outras histórias, o nome de Catarina e sua mãe, Sebastiana, bem como suas imagens serão mostradas. Porque, ao contrário das outras histórias, a dona Sebastiana foi a única que teve seus direitos humanamente respeitados nessa pandemia. Ontem, elas passaram o Dia Mães juntas.

Privilégios

“Tem pessoas que precisam, pela necessidade de trabalho essencial, ter alguém em casa. Uma médica ou um médico, por exemplo, precisam de alguém que ajude em casa”. Esta foi a justificativa de Zenaldo Coutinho (PSDB), prefeito de Belém, para o decreto que tornou o serviço doméstico como essencial na pandemia.

Segundo a professora doutora Mônica Prates Conrado, do Programa de Pós-Graduação de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará (PPGSA/UFPA), os decretos representam a reedição da base de relações escravocratas como lógica para as atividades domésticas.

“Há uma perspectiva racial, de gênero e de padrões de sexualidade muito presentes nessas relações. As bases das relações de trabalho doméstico, se encontram nessa herança que se reedita e ganha dinamicidade ”, explica.

Após os séculos de escravização de pessoas negras, os serviços domésticos foram assumidos majoritariamente por mulheres negras como forma de gerar renda. Essa passagem do sistema escravocrata para o capitalista ainda marca a vida das pessoas negras.

“O sistema escravocrata massacrava perversamente pessoas negras, já que não via negros como pessoas. Já o capitalismo desumaniza e traz caráter de exploração que deve ser compreendido historicamente, pois se aproveita dessa herança, que foi reeditada e está em vigor. Há a exploração de corpos negros em mecanismos contemporâneos de desigualdades sociais alicerçados pelo racismo”, analisa a professora.

A justificativa do prefeito para o decreto, segundo ela, legitima o pensamento que permeia a vida de pessoas negras. “As pessoas naturalizam que aqueles corpos são para produzir trabalho que tem o seu caráter invisibilizado para as outras pessoas que se veem superiores. Isso tem a ver com a perspectiva escravocrata, de que esses corpos não estão para o trabalho intelectual, já que este é para os brancos”, afirma.

 

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