Preencha os campos abaixo para submeter seu pedido de música:
A divina Elizeth Cardoso (1920-1990) era uma mulher à frente de seu tempo. A frase soa clichê, mas nada era clichê na personalidade da primeira dama da MPB. Criada com outros cinco irmãos, quatro mulheres e um homem, ela via sua vida tolhida desde muito cedo principalmente pelo pai, que não a deixava ter muitas liberdades que não seriam bem vistas aos olhos da sociedade partindo de uma mulher jovem e solteira. Nascida no dia 16 de julho de 1920, a cantora faria 100 anos este mês. Mesmo tanto tempo após sua morte, ela segue lembrada como uma de nossas maiores vozes e precursora na luta das mulheres pelo reconhecimento na música.
Elizeth foi descoberta aos 16 anos de idade por Jacob do Bandolim durante uma festa de aniversário dela mesma na rua do Rezende, na Lapa. O bairro, visto com maus olhos pela sociedade moralista da época, não poderia ter sido um melhor reduto para a ascensão de quem construiu com sua vida um modelo da resistência feminina. A presença de Jacob na comemoração se deu por conta da amizade que o artista tinha com o pai de Elizeth, também músico. Anos mais tarde, em 1958, o apelido de divina veio do jornalista Haroldo Costa, que a chamou pela alcunha em um texto para o “A Última Hora” após assistir a um de seus shows. O nome pegou no meio artístico e entre os críticos culturais do país por conta da voz que conseguia ser potente e suave, erudita e popular, tudo ao mesmo tempo.
Elizeth Cardoso cantou em público pela primeira vez aos cinco anos e começou a carreira aos 16. Foi logo quando a carreira começou a deslanchar que Elizeth conheceu seu primeiro namorado, o jogador de futebol Leônidas da Silva (1913-2004). O relacionamento não era aprovado pelos pais. Não era bom que uma jovem, cantora e solteira ficasse voltando para casa altas horas da madrugada ou dormindo na casa do namorado. “Meu pai não queria (que ela namorasse)! Um dia, ele me colocou no telefone para desmanchar o namoro com o Leônidas com uma vara de marmelo (na mão). Desmanchei, mas no dia seguinte já estava na rua Ubaldino do Amaral namorando o Leônidas de novo”, ela contou em uma entrevista em 1981, ao programa “Os Astros”, da EBC.
O término com o futebolista veio depois da divina decidir adotar uma bebê que havia encontrado abandonada na rua. O jogador teria dado um ultimato para que ela escolhesse entre ele ou a menina. Elizeth não só “escolheu” a menina, a quem chamou de Tereza, como não hesitou em registrá-la como “mãe solteira”, um escândalo para a época. Um pouco depois, ela conheceu o músico Ari Valdez, com quem começou a namorar rapidamente e se mudou para a casa dele com a filha em seis meses. Tudo, é claro, contra a vontade dos pais. Elizeth e Ari tiveram um filho biológico, Paulo Cezar, e a cantora passou anos do relacionamento lutando contra o ciúme do marido, que não aceitava as viagens a trabalho e os compromissos noturnos, ao mesmo tempo em que já a havia traído.
“Nós temos um poder muito grande e chegou o momento da gente mostrar que nós somos também alguém”
No fim da década de 1930, quando se separou — ainda grávida, segundo o biógrafo e jornalista Sérgio Cabral — Elizeth não quis nada para ela, mesmo sem ter dinheiro para se sustentar e sustentar os filhos. Para conseguir alguma renda, ela decidiu aprender a dirigir e se tornar taxista na noite carioca. Ela revezava os dias em que se apresentava com o trabalho de motorista. Mulher negra, cantora, taxista, trabalhando na noite nos anos 1940. A divina não era divina só pela voz, mas por sustentar ideais e projetos de vida completamente inaceitáveis para a sociedade da época. Ainda mais mulheres separadas e com filhos. Enquanto trabalhava, os filhos ficavam com sua mãe.
A carreira artística construída nos anos 1940 não veio fácil. Ela havia largado os estudos aos 10 anos e trabalhou como vendedora de cigarros, foi funcionária de uma fábrica de roupas de pele e até tentou a vida como cabeleireira. Com o emprego que conseguiu como cantora no Dancing Avenida, casa de danças no Rio de Janeiro, Elizete passou a ganhar 300 mil réis por mês. Na biografia de Ataulfo Alves, Cabral conta que a nova ocupação permitiu que ela trocasse o quarto em que morava na rua do Catete, no Rio de Janeiro, com os dois filhos e a mãe por uma casa de dois quartos em Bonsucesso. Até então, ela era dançarina de lá e ganhava dinheiro de acordo com o tempo que passava dançando com os clientes. Porém, segundo ela, eram poucos os que a convidavam para dançar.
“Nós temos um poder muito grande e chegou o momento da gente mostrar que nós somos também alguém, porque antigamente não havia essa oportunidade. Eu batalhei toda a minha vida, desde os 10 anos de idade. Eu tive muito pouco tempo para estudar, os meus pais se separaram, então eu tive que assumir, eu não não tive tempo para estudar porque comecei a trabalhar aos 10 anos de idade. Tinha um cafezinho que tinha um varejo de cigarro que foi meu primeiro trabalho, minha primeira experiência. Depois dali, foram vários trabalhos: fui trabalhar numa fábrica onde a gente pagava 10 tostões por um prato de comida”, ela contou em entrevista à Leda Nagle, na comemoração de seus 45 anos de carreira.
Aos poucos, a carreira foi deslanchando. Elizeth se tornou a noiva do samba-canção, mesma vertente cantada por vozes como Dalva de Oliveira e Maysa, e abriu as portas para a Bossa Nova ao gravar o LP “Canção do Amor Demais”, em 1958, cantando composições de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, com João Gilberto ao violão em duas faixas. Entre elas, o marco zero do movimento, “Chega de Saudade”.
Amante do samba, do carnaval da Portela, flamenguista de carteirinha, Elizeth via com humildade o título de divina. “Quando me chamam de divina na rua, eu nem olho, faço de conta que não é comigo porque na verdade me dá um pouco de encabulamento”, brincou com Leda Nagle. Foi a cantora americana Sarah Vaughan (1924-1990) que a convenceu de se empossar do título com propriedade.
“A Sarah Vaughn é muito minha amiga, sem ela falar o português e sem eu falar o inglês. E um dia ela soube que eu era ‘a divina brasileira’, mas que eu ficava meio encabulada (de ser chamada assim). Então ela procurou uma intérprete e disse: ‘Diz a ela o seguinte: um adjetivo que nos colocam, seja ele qual for, pode ser até um palavrão, a gente tem que aceitar. Nos EUA, eu sou a divina americana. Portanto, eu não vou deixar que ninguém me passe esse título. Eu serei a ter morrer. Então ela que segure essa divina com todas as forças e fique com ela até o dia derradeiro.’ Então está bom, se é assim, e eu estou segurando. A americana lá e a brasileira aqui”, contou.