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Por: Cila Santos
Circulou por aí o link de uma reportagem sobre uma creche que atende crianças 12 horas por dia e oferece serviços como lavanderia de uniforme e fornecimento de papinha congelada para que a mãe não precise cozinhar no final de semana.
A matéria foi bastante repercutida. A frase “Nunca precisei fazer uma papinha de bebê na vida” foi intensamente problematizada e criticada, numa leitura condenatória do que se chama de “terceirização da maternidade”, que seria o ato de repassar a terceiros tarefas que são consideradas “características” das mães ou fazendo parte do combo a que chamam maternar.
Primeiro tem uma coisa bastante incômoda no termo “terceirização da maternidade”. Terceirizar implica em delegar a terceiros serviços ou funções que originalmente seriam suas. Pode então a maternidade ser “terceirizada”?A maternidade é definida como uma função? Ser mãe é ter uma função? Se sim, qual é a “função” de uma mãe?
Aliás, voltemos um pouco. Quais são as funções inerentes que podemos considerar que uma criança precisa para sua sobrevivência e desenvolvimento? A grosso modo, podemos dizer que ela necessita:
São estas as funções da “mãe”? Executar estas tarefas? E note que sequer listei sobre amar, socializar, educar, transmitir valores.
Mas e quanto a este exercício da matemática impossível: observando todas as demandas podemos afirmar que seriam necessárias no mínimo 4 (quatro) pessoas para executar todas as tarefas que são atribuídas a mãe. Sim, quatro, porque aquela primeira pessoa, responsável pelos cuidados diretos da criança (que não pode ficar sozinha), também precisaria dormir, comer, tomar banho, cagar, fazer sexo, conversar com outros adultos e realizar diversas outras atividades que não envolvam crianças. Portanto o justo seria considerar pelo menos duas pessoas alternando essa supervisão. Assim, de forma justa partiríamos de pelo menos 4 (quatro) indivíduos para dar conta das demandas básicas de sobrevivência de uma criança com um mínimo de qualidade. E também com um mínimo de conforto físico, psicológico e emocional para o cuidador.
É obrigação da mulher realizar estar tarefas quando se torna mãe? Mãe é quem cuida? E o pai? Ser o adulto que trabalha? Apenas isso? E se esse homem não está empregado? E se a mãe trabalha também? Qual a “função” do pai?
Vivemos num país onde 5,5 milhões de crianças sequer possuem o nome do pai do registro de nascimento. Homens que fugiram completamente a sua responsabilidade de criação das crianças que geraram. E dos que assumiram, quantos se mantém com as suas companheiras? Dos que se separaram, quantos assumem alguma das responsabilidades existentes no ato de criar uma criança? Quantos pagam a pensão? Quantos compartilham a guarda de fato? Quantos dividem os cuidados?
Dos casais que estão juntos, quantos homens vão além da função do sustento? Ou nem isso?
Com quem a mãe solo pode contar pra criar o seu filho se não “terceirizar” o que chamam de maternidade? Onde estão as outras 3 (três) pessoas que ela precisa?
Ser mãe é sobre “cuidar”? Mãe é quem cuida? Você tem coragem de dizer a mulheres pobres que só conseguem ver seus filhos nos final de semana porque estão buscando o sustento deles, que elas não são mães?
E aquilo que uma mulher deseja pra si? não conta? Ela precisa automaticamente amar tudo que tem a ver com parentalidade apenas porque teve um filho?
E se ela ama estar com seu filho, mas detesta as outras tarefas inerentes ao cuidado de uma criança? E se ela ama o seu trabalho? Será que toda mulher quando se torna mãe escolheria mesmo passar todo o seu tempo realizando por boa parte da sua vida todas as atividades relativas aos cuidados de uma criança? É isso que vai torná-la mãe?
São necessários pelo menos 4 adultos para cuidar de uma criança mas nenhum desses adultos precisa ser necessariamente a mãe. E isso é importante para gente entender, repensar e reivindicar que papel, e que lugar quer, pode e consegue ocupar no espaço de parentalidade daquela criança. E isto significa que talvez exista, ou deveria existir, um lugar de maternidade possível onde mulheres não se sentem tão infelizes porque conseguem compor para si tarefas que conseguem realizar com plenitude, sem abrir mão da sua individualidade. E é óbvio também que estes são parâmetros que precisam ser construídos. Não temos isso hoje, excetuando para aquelas que são privilegiadas economicamente. Via de regra o que temos são mulheres que acumulam toda a responsabilidade.
Porque a maternidade é sobre isso, no fim das contas, sobre o peso da responsabilidade. E sobre a responsabilidade ser toda da mulher. A mãe não é necessariamente quem cuida, ou quem pare, ou quem ama, ou quem educa. Não somente.
Mãe é a mulher que é reconhecida socialmente como responsável pela criança. A pessoa que deve dar conta — seja de que jeito for — das mil demandas de criar o filho. E quase sempre sem nenhum apoio da sociedade.
É aquela que deverá garantir que aquela criança não vá incomodar, causar transtorno, que se torne um “cidadão de bem”. Não importa como. Não importa muito se ela pariu ou adotou. Se é ela quem realiza as tarefas, ou se é outra pessoa. Se é ela quem educa ou é a avó. Se é ela ou outro quem sustenta. Ela vai ser cobrada para isso aconteça, ela que dê um jeito. Porque se alguma coisa der errado com a criança, ela vai ser facilmente identificada. E cobrada. E punida. Porque todos os dedos sabem muito bem em que cara vão apontar. A mãe sempre é localizada para ser apedrejada.
Mãe é a mulher que “pariu Mateus”, portanto embale.
E como resultado dessa responsabilização, a mulher se desdobra e segue se martirizando: por ter de trabalhar e não estar presente para seu filho, por ter que dividir as atenções do filho com afazeres domésticos, por estar sempre cansada demais, por não sobrar nenhum espaço pra ela.
O trabalho vai mais ou menos, a casa nunca está completamente arrumada, as crianças estão sempre rodeando querendo mais atenção, a mulher sente que não tem tempo pra fazer nada por si mesma. E se consome de culpa. Falamos em jornada tripla, mas isso não é uma verdade. Ninguém consegue fazer essa tripla jornada, é fisicamente impossível.
Perceba, manter mulheres permanentemente ocupadas com a responsabilidade de cuidar dos filhos é extremamente conveniente ao patriarcado. Em um sistema que é feito para que homens dominem e prevaleçam, quantas mulheres têm seus talentos e potencialidades absolutamente subtraídos, não conseguem sair do lugar porque estão sempre assoberbadas? Quantas se tornam dependentes economicamente e precisam aceitar todo tipo de abuso? Quantas não gostariam de permanecer estudando, trabalhando, produzindo, criando, mas estão presas no lar enquanto seus companheiros acumulam faculdades, MBAs e promoções de carreira? Quantos homens medíocres estão por aí fazendo muito sucesso, pensando, produzindo, escrevendo, criando, falando sobre assuntos de mulheres, enquanto suas esposas estão confinadas cuidando dos seus filhos?
Não podemos falar de libertação das mulheres sem falar de libertação das amarras do trabalho doméstico e do cuidado e para isso precisamos pensar como construir a tal “aldeia” de verdade. Não como uma metáfora. Não como uma ideia abstrata. E essa aldeia, começa e termina com rede de apoio institucional. Porque a família, os amigos, não deveriam ser a rede oficial que uma mulher deveria contar. Avós deveriam ter o direito de serem avós e não terem que acumular, já em idade avançada, o trabalho de cuidar de crianças.
Deveríamos ter acesso a creches integrais, de qualidade, deveríamos lutar por leis trabalhistas que dessem o mesmo peso em direitos e deveres para homens e mulheres que tivessem filhos, com prazos semelhantes de licença parental, com uma lógica em que ninguém fosse escravo do trabalho e premiado por trabalhar 12 horas, por um sistema que não punisse pessoas que tivessem filhos por priorizarem o cuidado com eles. Deveríamos ter homens assumindo seu lugar na paternidade. A aldeia é aqui, e essa aldeia começa com toda uma sociedade parando de tratar crianças como um problema. E isso começa desde o contratante que discrimina mães porque acha que elas são “menos produtivas” até uma cultura que fecha os olhos para o abandono paterno e não cobra responsabilidade de homens sobre sua parentalidade.
A maternidade só funciona se for “terceirizada”: realizar sozinha todas as tarefas que uma criança demanda é uma missão impossível. Você não vai conseguir. Não é feito para que você consiga e e ainda mantenha integridade psíquica, individualidade, viva uma vida para além disso. Se descubra para além de ser mãe. E esse sistema existe exatamente para isso, te aprisionar nesse lugar. Podemos começar entendendo isso, nos cobrando menos e cobrando mais apoio a quem é de direito. Antes disso, é só maternidade compulsória na veia. São só mulheres se arrastando pela vida e tentando desafiar a lei da física para estarem em mais de um lugar ao mesmo tempo. Precisamos repensar os papéis que cumprimos e tarefas que realizamos sem tempo nem para respirar.