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Arquivo: Blog Mulheres na Comunicação
Revista ALTERJOR
Grupo de Estudos Alterjor: Jornalismo Popular e Alternativo (ECA-USP)
Ano 02– Volume 01 Edição 03 – Janeiro-Junho de 2011
Avenida Professor Lúcio Martins Rodrigues, 443, Cidade Universitária, São Paulo, CEP: 05508-900
VIDAS, VOZES E PALAVRAS DE MULHERES NO RÁDIO
SIM, ELAS PODEM…
Maria Inês Amarante
RESUMO: Neste momento em que se intensificam os debates sobre a democracia da
comunicação em vários cantos do país, mulheres constroem uma nova história do rádio,
atuando em redes e junto à suas comunidades. Este trabalho pretende mostrar três
experiências radiofônicas femininas: a dos programas Palavra de Mulher e Voz da
Mulher, da Rádio Educadora e Rádio Difusora de Goiânia, no Estado de Goiás; e o Vida
de Mulher, da Rádio Comunitária Independência, no interior do Ceará. Fruto de
iniciativas de coletivos de mulheres, eles dão visibilidade aos movimentos sociais dos
quais elas participam, promovendo debates de cunho social, cultural, político e
econômico e priorizando questões de gênero e cidadania feminina. Estas comunicadoras
guerreiras – empenhadas na causa das mulheres e no direito à comunicação -, estão
enredadas através da Rede de Mulheres da AMARC e da Rede de Mulheres em
Comunicação, onde trocam suas experiências, saberes e materiais que servem de
incentivo a outras mulheres. Este trabalho tem como base os relatos das protagonistas,
documentos e bibliografia sobre comunicação alternativa e comunitária.
PALAVRAS-CHAVE: rádio comunitária; comunicação; mulheres; gênero;
cidadania.
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Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.
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1. Introdução
A história do rádio no Brasil é marcada pela dicotomia entre concessões públicas
para o seu funcionamento e o interesse do público receptor, as políticas governamentais
privilegiando, sobretudo, interesses privados em detrimento dos anseios da sociedade
civil.
Conforme levantamento feito por Caldas2, nove famílias detém verdadeiros
oligopólios dos meios de comunicação eletrônica3, dos quais participam 271 políticos
que se associam ou dirigem 324 veículos, entre senadores, deputados, governadores,
prefeitos ou vereadores que possuem outorgas de rádios e televisão4 – o que vem de
encontro à Constituição Federal. Além de utilizarem estas mídias como palco para suas
campanhas políticas, obtém grandes lucros com a publicidade que divulgam; entre um
anúncio e outro o público é visto como um mero consumidor.
Dessa maneira, o rádio, cujo objetivo primeiro foi a causa educativa – tão cara a
Roquete Pinto, um de seus mais ilustres iniciadores -, transformou-se em “popular”,
voltado ao lazer e à diversão como lembra Gisela Ortriwano5, usando de seu potencial
para conquistar novos mercados.
Ao invés de oferecer uma programação informativa, educativa e cultural à
população, a mídia divulga sobretudo o entretenimento e o conteúdo padronizado. E,
como observa Amarante6 é justamente através dela que a grande parte dos receptores se
2 CALDAS, Maria das Graças Conde. Democratização na radiodifusão: da utopia à esperança com o
compromisso público do PT, 2005.
3 A família Marinho (Rede Globo), detém 17 concessões de televisão e 20 de rádio; a família Sirosttsky
(RBS), possui 14 emissoras de TV e 21 de rádio; a família Abravanel (SBT – grupo Silvio Santos), 9
emissoras de TV; a família Câmara (Grupo Câmara) detém 7 concessões de TV e 13 de rádio; a família
Bloch (Grupo Manchete), detinha 5 concessões de TV e 6 de rádio, agora nas mãos da Rede TV; a família
Daou (TV Amazonas), é proprietária de 5 canais de TV e 4 de rádio; a família Zahran (Grupo Zahran)
conta com 4 canais de TV e 2 de rádio; a família Jereissati (Grupo Verdes Mares), do Ceará, é
proprietária de uma emissora de TV e 5 de rádio e o Grupo Condomínio Associados, por sua vez, detém 3
concessões de TV e 9 de rádio.
4 Dados fornecidos pelo site www.donosdamidia.com.br, relativo aos mandatos até 2009.
5 ORTRIWANO, Gisela Swetlana. A Informação no rádio: os grupos de poder e a determinação dos
conteúdos, 1985, p. 15.
6 AMARANTE, Maria Inês. Rádio comunitária na escola: protagonismo adolescente e dramaturgia na
comunicação educativa, 2004, p. 40.
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informa, pois devido à condição socioeconômica e cultural, quase não lêem revistas,
jornais ou livros. Com a intenção de aumentar sua audiência, a mídia comercial vem se
apropriando da temática e da linguagem populares.
Ortriwano também ressalta que os grupos de capital privado que recebem licença
concessionária do Estado não levam em conta a “responsabilidade social” que deveria
nortear estas concessões7. Longe do poder de decisão sobre as pautas midiáticas
cotidianas, a população não conta com meios para avaliar a qualidade da programação
que recebe ou suas conseqüências. No processo de publicização da vida privada que
promove, a mídia privada pouco ou nada tem feito para valorizar as mulheres e suas
lutas. Ao contrário: explora seus corpos e as apresenta como objetos de consumo.
Apesar de pouco considerada, a ocupação do espaço público radiofônico pela
sociedade civil, e que permite efetivamente uma intervenção em larga escala nos
conteúdos veiculados, é garantida por lei desde 19988. Mas as rádios alternativas e
comunitárias que começaram a penetrar nesse espaço hegemônico a partir dos anos
1970, encontram até hoje entraves para se transformar em um carro-chefe de
convivência e desenvolvimento. Há que se pensar nos meios para legitimá-las e garantir
a freqüência e a qualidade de suas programações – feitas geralmente por voluntários –
para que envolvam plenamente a população.
Estas e outras reivindicações marcaram a 1ª. CONFECOM – Conferência
Brasileira de Comunicação, realizada no mês de dezembro de 2009, em Brasília, cujo
tema foi: “Comunicação: meios para a construção de direitos e de cidadania na era
digital”. Durante os trabalhos conjuntos, jornalistas, radialistas e professores,
representantes de meios de comunicação comunitários, educativos e comerciais9 de todo
o país, entre inúmeras propostas e polêmicas, debateram a criação de Conselhos de
Comunicação Estaduais, com poder de fiscalizar o funcionamento das mídias; a
7 Id. p. 59.
8 Lei 9.612/98, complementada pelo Decreto n. 2615/98.
9 Grande parte dos empresários da comunicação detentores de importantes redes midiáticas preferiu se
ausentar da Conferência, divulgando sistematicamente a informação de que as iniciativas dos grupos
políticos e da sociedade civil que se mobilizaram para que ela acontecesse visam, sobretudo, uma volta à
censura, um cerceamento à liberdade de expressão.
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alteração dos critérios e responsabilidades pelas concessões de canais, um novo marco
regulatório, bem como questões relativas à qualidade do que é divulgado pelas mídias.
Tudo isso nos faz lembrar que, apesar de ancião, o rádio nunca perdeu a vitalidade
ou a capacidade de rejuvenescer seus ideais ao longo dos anos. Além de registrar nos
primórdios de sua história inúmeras experiências educativas de sucesso10, hoje conta
com um grande número de atores sociais que estão mostrando a viabilidade de uma
comunicação dialógica e inclusiva que estabelece vínculos intrínsecos com
comunidades e culturas locais.
As mulheres têm feito parte desta luta e, com o poder de suas vozes, vão tomando
iniciativas “no sentido de afirmar o papel da comunicação de gênero para a
consolidação de uma comunicação democrática entre pessoas”, como registra o Cemina
– Centro de Estudos e Projetos da Mulher11. A ONG, criada em 1988, articulou a Rede
de Mulheres no Rádio, hoje Rede de Mulheres em Comunicação, que reúne
comunicadoras de todo o país.
A AMARC – Associação Mundial de Rádios Comunitárias, com representação no
Brasil desde 1995, e que conta atualmente com 51 associadas locais, entre emissoras
comunitárias, produtoras de rádio, redes e pessoas físicas, seguindo os passos dos
movimentos de países latino-americanos vizinhos, onde se faz presente, reestruturou sua
Rede de Mulheres, inaugurando o “Programa de Gênero”12, cuja proposta é promover a
discussão das rádios comunitárias com perspectiva de gênero, apoiando o trabalho das
mulheres principalmente através da formação e da troca de informações e experiências
entre radialistas associadas13.
10 Entre elas, as iniciativas apontadas por Zeneida Assumpção (1999, p. 32-3) como a da Rádio
Educadora Paulista, de 1924; a Rádio Educativa da CBR – Confederação Brasileira de Radiodifusão, de
1933; e por Moreira (1991, p. 17), ainda nos anos 1930, da Rádio Sociedade e da Rádio Escola Municipal
do Distrito Federal, experiência de educação à distância realizada pelo educador Anísio Teixeira.
11 CEMINA – Comunicação, Educação, Informação em Gênero. Fazendo Gênero no Rádio, 1998, p. 9.
12 As reivindicações da Rede de Mulheres da AMARC-Brasil foram reunidas na Plataforma das Mulheres
para a Ia. CONFECOM, em maio de 2009.
13 A AMARC – Associação Mundial de Rádio Comunitária e a ALER – Associação Latino americana de
Educação Radiofônica podem ser consideradas as duas entidades internacionais mais significativas de
apoio às rádios comunitárias no continente.
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Assim, por meio do rádio foram sendo reveladas muitas vozes femininas fora do
eixo sul-sudeste, como estas que mostramos neste artigo.
2. A comunicação a serviço da igualdade de gênero
Em 1993, Divina Jordão e Geralda Ferraz – comunicadoras e educadoras –
uniram seus ideais para lançar o programa Palavra de Mulher, na Rádio Difusora AM
640 de Goiânia14, que contou com o apoio da Pastoral da Mulher. O objetivo era dar
visibilidade às ações dos movimentos de mulheres e contribuir para esclarecer a
população sobre os direitos humanos e femininos. Como a rádio é ouvida em mais de
200 municípios goianos, as produtoras tiveram a possibilidade de divulgar amplamente
seu trabalho.
Desde então, as ações comunicativas propostas priorizam a questão social mais
relevante, que é a causa das mulheres. Assim são abordados assuntos aprofundando a
temática de gênero, envolvendo a população historicamente marginalizada,
principalmente da periferia. “Eles nunca se esgotam e nem ficam na superficialidade
[conta Geralda], são discutidos de forma responsável e crítica, com o caráter de
informar e também de conscientizar nossas ouvintes”. O programa – acrescenta a
radialista – “é um espaço que precisamos o tempo todo ocupar, reafirmando nossas
convicções e posições ideológicas”. Para as produtoras, o importante é trazer ao debate
temas fundamentais que não são explorados pela mídia comercial – e aos quais as
ouvintes não têm acesso cotidiano, tais como: saúde, educação, comportamento,
cidadania, direitos da mulher, violência, arte etc. e que são apresentados com um olhar
crítico e esclarecedor. Alguns desses temas “estão sendo paulatinamente incorporados
ao mundo da política, [lembra o coletivo de mulheres da AMARC]15, assumidos como
objeto de debate público.
A perseverança e o compromisso com as mulheres fizeram com que o Palavra
de Mulher ganhasse credibilidade e tivesse efeito multiplicador. Em 2002, as
comunicadoras colaboraram com o Conselho Estadual da Mulher em outra produção
14 Hoje, o programa é apresentado todos os sábados ao meio-dia, com uma hora de duração.
15 AMARC ALC y ALER. Cambio Social y cambio cultural. La vinculación de lãs Mujeres y La Política.
Gritos em El coro de señoritas, AMARC ALC y ALER, Buenos Aires, 2008, p. 10.
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radiofônica e, após vencerem um concurso de inclusão digital, cujo prêmio foi um
computador e a capacitação em edição de áudio, iniciaram uma parceria com a Rádio
Universitária de Goiânia, lançando outro programa de gênero, o Voz da Mulher16,
apresentado por Divina Jordão e Ivone Cunha.
Segundo Roldão17 “as emissoras universitárias constituem parcela significativa
(cerca de 40%) da rede de radiodifusão educativa em nosso país”, o que é mais um
motivo para se resgatar e fortalecer a vocação primeira do rádio brasileiro.
Os trabalhos das mulheres goianas permitiram outras inserções em projetos na
área da Educação. Divina Jordão, por exemplo, contribuiu na criação da rádio-escola
Milênio, revolucionando o projeto pedagógico do Colégio Estadual Jardim Balneário
Meia Ponte e Geralda Ferraz iniciou outro projeto de rádio escolar na Escola de Ensino
Fundamental Orientar Centro Educacional. Em ambas as escolas as rádios também
priorizam a abordagem de gênero, no sentido da superação do preconceito com os
meninos.
A perspectiva de que o protagonismo da juventude nas rádios escolares nascentes em
vários cantos do Brasil venha apontar para uma nova cultura da participação nos meios de
comunicação a partir da escola – que ainda é o lugar ideal para se praticar inclusões – tem sido
apontada como uma alternativa promissora em vários estudos. Ao abordar a prática radiofônica
por adolescentes no meio educativo, Amarante18 salienta que muitas meninas que atuaram nas
rádios escolares se aproximaram do veículo por simples prazer, sem ter noção do que vem a ser
“uma questão de gênero”. Nota-se, assim, que os debates sobre gênero no meio educativo ainda
são tímidos e necessitam de estímulo para se ampliar e se tornar mais corriqueiros.
Porém ao perder o medo de se expressar, as meninas – lembra Mata19 – vão “se
descobrindo enquanto agentes de transformação social, não esperando que outros tomem a
16 O novo programa vai ao ar todas as segundas-feiras das 11:30 às 12 horas.
17 ROLDÃO, Ivete Cardoso do Carmo. A função do rádio educativo no Brasil, 2008, p. 182-3. A autora
salienta (p. 179) que um dos objetivos da comunicação educativa, ao qual se refere o Artigo 1º. da
Portaria Interministerial n. 651, de 15 de abril de 1999, é atuar junto ao sistema de ensino de qualquer
nível ou modalidade.
18 AMARANTE, Maria Inês. Medo de Ginecologista: saúde, gênero e dramaturgia da adolescente na
rádio comunitária da escola, 2004. Site de busca:
http://www.comunicasaude.com.br/revista/01/artigos/artigo10.asp
19 MATA, Maria Cristina (coordenadora). Mulher e rádio popular, 1998, p. 13.
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palavra em seu lugar”. Esse exercício da palavra própria representa uma construção cultural da
identidade de gênero no espaço público, operando transformações. A primeira delas advém do
poder da linguagem.
Os programas Palavra de Mulher e Voz da Mulher se tornaram uma referência
nas discussões de gênero e a equipe viu a necessidade de ampliar suas ações. Assim, em
2004, fundaram a Associação Mulheres na Comunicação, para efetivar projetos de
capacitação nas temáticas trabalhadas com multiplicadores que atuam em várias esferas
dos movimentos sociais. A entidade estabeleceu novas parcerias, entre elas com o
Centro Livre de Artes, que tem na artista plástica Ivone Cunha uma aliada na
apresentação do Voz da Mulher, além de patrocinadores como a escola Orientar Centro
Educacional, o CESEG e o Grupo de Mulheres Negras Dandaras do Cerrado. Além
disso, incorporou às suas ações o apoio a estudantes e mulheres da comunidade no
sentido de capacitá-los para uma atuação no movimento de mulheres, ganhando as
adesões de uma jornalista, Denise Rodrigues, de Bruna Porto e da teóloga Aparecida
Damascena. A história de todas estas mulheres tornou-se a própria história dos
programas radiofônicos que já ganharam o reconhecimento da sociedade.
Com muito esforço elas superam dificuldades financeiras para garantir seus
espaços nas rádios e o compromisso assumido de divulgar, entre tantos assuntos, as
histórias de vida de mulheres anônimas, aumentando sua auto-estima. A participação
nas duas redes de mulheres – e a criação de um blog interativo – tem servido para
enriquecer os conteúdos e abrir mais um canal de escuta às ouvintes e participantes.
A exemplo do que ocorria em outras regiões do país e da América Latina desde
os anos 1970, o interior do Ceará viu nascer sistemas de comunicação por meio de altofalantes,
cuja finalidade era produzir informações e conhecimentos que interessassem
efetivamente às comunidades, retratando a realidade local. Estas “radiadoras” foram
muito comuns antes do aparecimento da televisão, e meio de difusão que transmitia
apenas músicas e informações de utilidade pública.
O analfabetismo e a “evasão” escolar, bem como a falta de uma política mais
abrangente do Estado para a educação, levou muitas associações de moradores a
comunicar-se mediante os recursos da cultura oral, e o rádio sempre foi o meio mais
próximo da oralidade.
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De um modo geral, essas rádios cumpriram mais eficientemente a missão de
levar adiante sua ação social e de educação não-formal em localidades distantes. Com a
ajuda principalmente das CEBs, Comunidades Eclesiais de Base e de Pastorais, lembra
Amarante20, estas experiências de comunicação comunitária sonharam em se tornar
verdadeiros centros de produção de informação e de referência cultural, o que
contribuiu para a conscientização das comunidades e o resgate de seus valores originais.
Contudo, a concentração da mídia nas mãos de poucos também ali faz história.
Em 1998, o Jornal O Povo registrava que das 84 emissoras de rádios FM ditas
“comunitárias”, existentes no interior do Estado, 45% eram apontadas como sendo de
políticos no exercício do poder, formando até mesmo duas redes21. Estes dados ilustram
o peso desigual no tocante à distribuição de canais alternativos de comunicação no
Ceará, onde impera a influência política, econômica e familiar do Grupo Edson
Queiroz22, colocado entre os oito maiores conglomerados empresariais de mídia do
nordeste.
No interior do Ceará, nos anos 1990, o movimento comunitário idealizou várias
rádios comunitárias de baixa potência, incentivado pelas mobilizações nacionais. Uma
delas foi a Rádio Independência, na cidade do mesmo nome, fundada em 1996 pela
ACORDI – Associação Comunitária de Radiodifusão Independência, pouco antes de ser
votada a lei 9.612/98 que legalizou o serviço de radiodifusão comunitária.
Em 1997, a entidade se juntou a sete outras associações municipais para iniciar a
transmissão experimental da Rádio FM Comunitária Independência, na freqüência
104.9 do dial. No entanto, os voluntários tiveram que superar inúmeros obstáculos para
levar adiante seus ideais de “democratizar a informação, divulgar as iniciativas
populares da comunicação a serviço da vida e de uma sociedade justa e fraterna”, como
explica Rosa Gonçalves. Inicialmente, houve o processo de capacitação dos
20 AMARANTE, Maria Inês. Rádio comunitária na escola: protagonismo adolescente e dramaturgia na
comunicação educativa, 2004, p. 43.
21 Rede Cearense de Notícias e Rede Metropolitana de Rádio.
22 O ex-Deputado Federal Edson Queiroz, relator do projeto de lei de regulamentação das rádios
comunitárias em 1997, é cunhado do ex-Governador Tasso Jereissati, Senador da República em final de
mandato, sendo que ambos são sócios proprietários dos dois únicos jornais com circulação diária em
Fortaleza, o Diário do Nordeste e o Jornal O POVO.
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comunicadores que queriam atuar na rádio. Em seguida, começou a luta pela legalização
junto ao Ministério da Comunicação e à ANATEL. Mesmo após a solicitação da
outorga, os responsáveis pela rádio receberam ameaças de fechamento da Polícia
Federal, enviada pela agência, fato que se consolidou de 17 de setembro de 2002 até 22
de maio de 2004, quando a rádio foi silenciada. Porém em agosto de 2004 voltou a
funcionar com uma autorização provisória e, finalmente, em dezembro de 2005, recebeu
uma licença de funcionamento por 10 anos.
Durante todo esse tempo, o projeto popular teve o apoio da comunidade, de
igrejas e outras entidades, além de contar com a força das mulheres que sempre foram
majoritárias no movimento, constituindo 68% das vozes na grade de programação e no
quadro de sócias colaboradoras. O medo, a burocracia, as dificuldades materiais, a
manutenção dos equipamentos, comprados com as contribuições vindas da comunidade,
foram superados com a união de todos. A rádio conseguiu garantir o seu funcionamento
primando pela qualidade musical, oferecendo um bom acervo. Os equipamentos básicos
permitem atender a demanda dos ouvintes, apesar dos apoios culturais permitidos pela
legislação vigente serem pouco representativos face ao montante de despesas cotidianas.
Mesmo diante de repressões e dificuldades, a rádio sempre manteve os
princípios que norteiam a mídia comunitária. Segundo Peruzzo23, eles são “a produção
popular; a participação dos cidadãos; interatividade com os receptores/produtores;
gestão participativa; autonomia político-religiosa; não comercial; segmentada; de
utilidade pública; democrática e cidadã e que ela atende aos interesses comunitários”. A
autora aponta igualmente para24 “o pluralismo, a sintonia com as especificidades de
cada realidade (…) e participação ativa de entidades não-governamentais e sem fins
lucrativos”.
A equipe de produção estabeleceu um objetivo comum: a divulgação das
informações locais, das iniciativas das comunidades e entidades, a valorização da
cultura popular e a escuta permanente dos moradores. Além disso, tem contribuído para
profissionalizar jovens desempregados em situação de risco e divulgar ações cidadãs.
23 PERUZZO, Cicilia Maria Krohling. Mídia Comunitária, 1998, p. 152.
24 Id., p. 143.
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Através de uma grade de programação variada, ela oferece a todos muita reflexão sobre
a dinâmica comunitária.
Encontra-se registrado na história da Rádio FM Comunitária Independência que
todos os que aderiram ao projeto:
Sentem-se irmanados com tanta gente boa que tem dado a vida para construir uma
sociedade democrática de fato, que procura contar com a participação de seus
membros de forma qualificada, a partir da informação e da consciência cidadã.
Ao longo desses treze anos de existência, o acompanhamento do processo
avaliativo e formativo pela AMARC-Brasil, em parceria com a ALER, através do
programa Ritmo Sul25 ajudou a rádio a repensar sua gestão na atual conjuntura.
A partir de 2009, quando as mulheres assumiram a direção da ACORDI,
representando 50% de seu quadro – composto por 12 membros -, sentiram a necessidade
de fortalecer os debates sobre gênero, combatendo o machismo no rádio e garantindo
conteúdos não discriminatórios em sua programação em relação a gênero, etnia ou
orientação sexual. Uma das primeiras iniciativas foi a criação de um programa feminino
que, além das mulheres da rádio, envolveu o coletivo de mulheres do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Independência, as animadoras das CEBs26 dos bairros e
educadoras das escolas, totalizando 30 participantes. Entre rodas de conversa com
trabalhadoras do campo, partilhas de vivências e dotes culinários, abriram discussões
sobre o desemprego, a violência doméstica, a sobrecarga de tarefas do lar, alternativas
econômicas solidárias e os fatores de desestruturação familiar que nortearam a criação
do programa Vida de Mulher, lançado em junho do mesmo ano27. O nome foi escolhido
pela própria comunidade, através de cartas, e-mails e telefonemas. Os homens também
participaram enviando sugestões.
25 O Projeto Ritmo Sur, bem como estudos e pesquisas significativos em parceria com universidades
constituem iniciativas conjuntas da ALER e da AMARC que merecem destaque. O Ritmo Sur, realizado
na América do Sul e México, tem como objetivo fortalecer as rádios populares e comunitárias através da
formação, centros de comunicação e instâncias de coordenação regionais e nacionais para a consolidação
das redes, voltadas à sustentação institucional, social e econômica.
26 As CEBs – Comunidades Eclesiais de Base ainda têm muita força no interior do Ceará, oferecendo
apoio a várias atividades comunitárias, inclusive as iniciativas em comunicação popular.
27 O Vida de Mulher vai ao ar aos sábados, das 11 horas ao meio-dia.
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Gostaríamos de destacar que, na idealização de sua programação inicial, em
1998, a Rádio Comunitária Mandacarú FM, do Bairro Ellery de Fortaleza, hoje
funcionando apenas como web rádio devido à repressão sofrida na época, lançou um
programa no formato de rádio-revista com o mesmo nome28. Por iniciativa de uma
equipe de mulheres que reuniu comunicadoras da ARCOS-CEPOCA – Associação das
Rádios Comunitárias de Fortaleza, a autora deste trabalho, operárias das fábricas de
beneficiamento de castanhas e militantes sindicais, ele atendeu à necessidade de abordar
temáticas de gênero, segundo Amarante29. As sete mulheres reunidas em torno do
programa Vida de Mulher garantiram durante vários meses esta produção.
Embora fazendo uso de uma tecnologia mais avançada, o Vida de Mulher criado
pela FM Comunitária Independência partilha dos mesmos ideais da equipe de
Fortaleza: contribuir para o crescimento pessoal das mulheres do município. Através de
uma metodologia participativa, que inclui entrevistas, debates, rodas de conversa,
informações locais e nacionais – que também são veiculadas pela Internet -, com espaço
para agenda cultural e participação de ONGs e entrevistadas, o programa ajuda as
ouvintes a pensar e a refletir sobre vida, cidadania e direitos.
Segundo Rosa Gonçalves, uma das produtoras, os desafios ainda são numerosos:
o poder masculino inibe a participação de muitas mulheres, que não se sentem capazes
de ocupar o lugar de protagonistas no meio de comunicação. Faltam também recursos
para mobilização, organização de novas capacitações e difusão cultural. Mesmo assim,
as comunicadoras seguem motivando as mulheres a se envolver com as atividades
artísticas, de confraternização e lazer tendo a rádio como ponto de referência. Num
processo participativo e organizado, comunicadoras, produtoras, mixadoras,
colaboradoras nos eventos sociais, amigas da rádio, todas são estimuladas a se juntar
para contribuir no crescimento de seu meio de comunicação, desenvolvendo a própria
capacidade. Uma das voluntárias relata que este trabalho traz “uma felicidade enorme e
28 A iniciativa mereceu destaque no Jornal O POVO, de 13 de dezembro de 1998, que publicou um artigo
de Ana Naddaf: “Atenção! Mulheres no Ar”.
29 AMARANTE, Maria Inês. Rádio comunitária na escola: protagonismo adolescente e dramaturgia na
comunicação educativa, 2004, p. 51.
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isso faz com que a cada dia a gente trabalhe com mais garra, força, vontade e esperança
de dias melhores”. Rosa Gonçalves30 reforça a idéia de que:
As relações de gênero envolvem todas as classes e questões sociais e a luta pela
igualdade entre homens e mulheres é árdua. Quando começamos a discutir,
levantar questões, propor o estabelecimento de novas formas dessas relações, como
condição imprescindível para que a justiça e a igualdade de fato se realize na
prática, percebemos que se torna difícil também dentro da comunicação, pois
encontramos barreiras do machismo que impera – e que às vezes são
determinantes. [Alterá-lo] só é possível quando as mulheres ocuparem esses
espaços e utilizar o instrumento da voz para denunciar essas formas de opressão e
anunciar e profetizar o novo, não só no discurso, mas na prática, afirmar direitos
por uma cidadania em bases igualitárias, por outra ordem social e política. Cada
vez mais ela está se tornando uma referência de compromisso com a transformação
social. Essa integração que as mulheres estão criando entre comunicação e
sociedade (…) vai fazendo com que a sociedade perceba a importância fundamental
de uma comunicação que reflete a dinâmica dos acontecimentos voltada para a
realidade em que vivemos.
Mesmo diante das dificuldades como cuidar da casa, dos filhos, trabalhar em
tempo integral, elas continuam realizando um programa bem planejado e se sentem
responsáveis pelo processo de construção da rádio comunitária, onde há troca e
aprendizado. O desejo de seguir adiante se afirma no programa que é visto como um
instrumento de luta por uma política de igualdade de gênero e de conscientização e
valorização das mulheres e das populações:
Queremos no rádio ter um olhar, um pensar e um agir diferenciado da grande mídia
brasileira onde as diferenças sociais representadas entre mulheres e homens são
grandes. As mulheres são expostas à representação de modelos, objeto de
publicidade e os homens considerados mais capacitados que elas, além de
possuírem mais direitos. Queremos dizer que somos importantes, tanto quanto os
homens; queremos somar, construir através da comunicação uma sociedade justa e
igualitária.
Apesar de um futuro incerto no tocante à função e ao uso democrático da mídia,
principalmente do rádio, temos que considerar a existência de um novo fluxo de
interatividade (ou da possibilidade de comunicação dos receptores com os meios), que
altera a participação social dos cidadãos, permitindo interações culturais de forma
inusitada. Assim, uma cultura regional terá maior poder de expressão rompendo a
30 GONÇALVES, Rosa. Relatório, 2010.
Revista ALTERJOR
Grupo de Estudos Alterjor: Jornalismo Popular e Alternativo (ECA-USP)
Ano 02– Volume 01 Edição 03 – Janeiro-Junho de 2011
Avenida Professor Lúcio Martins Rodrigues, 443, Cidade Universitária, São Paulo, CEP: 05508-900
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hegemonia imposta pela indústria cultural, podendo propor alternativas capazes de
intervir no processo de produção massificada.
Na 10ª. Conferência Mundial de Rádios Comunitárias da AMARC (AMARC-
10), que acaba de acontecer na cidade de La Plata, na Argentina, reunindo
comunicadores dos cinco continentes, as mulheres anunciam muitas mudanças nos anos
vindouros: a chilena Maria Pia Marta acaba de ser eleita Presidente da AMARC
Internacional. Presente neste encontro, a radialista Denise Viola, da Rede de Mulheres
da AMARC-Brasil, que atuou junto ao CEMINA dando voz ao programa Fala Mulher31
deixou uma “imagem sonora” para se despedir. Ela comparou a sociedade a uma ave.
Cada asa do animal representaria um gênero: “Hoje essa ave está capenga, a asa
masculina pesa mais. Nossa sociedade precisa das duas asas em equilíbrio para voar,
para ser realmente livre”.
Se apesar das desigualdades as mulheres já conquistaram vias próprias de acesso
protagonizando tantos projetos nos meios de comunicação, ao ocuparem o poder elas,
certamente, vão multiplicar este trabalho educativo, criativo e questionador para
impulsionar a evolução feminina.
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31 O programa Fala Mulher, transmitido também pela Internet, divulgou nacionalmente inúmeras
campanhas sobre a saúde e os direitos da mulher, pela Rede de Mulheres no Rádio, nos meios de
comunicação de que participam de 1988 a 2004. A produção de 16 anos possibilitou a realização do
maior arquivo sonoro nacional sobre temas relacionados à mulher: www.radiofalamulher.com.
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Sites consultados:
www.mulheresnacomunicacao.blogspot.com
http://brasil.amarc.org
http://www.aler.org/index.php
http://www.cemina.org.br