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Via: El País
O lobby antiaborto adotou uma nova estratégia. O grupo pretende aumentar a pressão sobre o Congresso Nacional por meio da criação de frentes parlamentares nas Assembleias Legislativas e da modificação de constituições estaduais. O objetivo: acabar com qualquer possibilidade de se realizar um aborto legal, até nos casos previstos no Código Penal brasileiro desde 1940. Atualmente, já são nove frentes instaladas em diferentes regiões do país —Acre, Alagoas, Maranhão, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e Sergipe—, sendo que seis foram lançadas entre setembro e dezembro de 2019. Em outros dois Estados, Rondônia e Espírito Santo, parlamentares se articulam para viabilizar o lançamento de mais duas frentes.
Coordenador do Movimento Legislação e Vida, Hermes Rodrigues Nery afirma que a ideia é organizar e consolidar os núcleos contra o aborto que existem país afora: “O movimento já está capilarizado. A tendência é crescer”. É dele a proposta de incluir na Constituição paulista o “direito à vida desde a concepção”, o que inviabilizaria o aborto previsto em lei no Estado. A legislação brasileira permite o procedimento em três situações: gravidez decorrente de estupro, quando há risco de morte da gestante e em caso de feto anencefálico (ausência ou formação defeituosa do cérebro). “Para fazer por iniciativa popular, precisamos de 330.000 assinaturas, ou seja, 1% do eleitorado paulista. Já temos quase 200.000. E não são eletrônicas. São assinaturas manuais, pessoa a pessoa”, diz Nery.
Ainda que o projeto seja votado e aprovado pelos deputados de São Paulo, seria questionado por contrariar a legislação maior do Brasil, a Constituição Federal. Na opinião de Nery, este não é um problema: “Essa iniciativa tem caráter pedagógico. É política. Mesmo que o Supremo Tribunal Federal refute, mostramos que existe esta força da sociedade”.
O coordenador do Movimento Legislação e Vida ressalta que nem todos os Estados permitem emenda por meio de iniciativa popular, mas que a “brecha” existe em São Paulo. Com essa tática, o movimento pretende acelerar em Brasília a tramitação do Projeto de Emenda à Constituição conhecido como PEC da Vida, que prevê a inclusão do direito à vida “desde a concepção” no parágrafo 5º da Carta Magna. Em dezembro de 2019, ele foi um dos oradores da cerimônia de lançamento da Frente Parlamentar Mista Contra o Aborto e em Defesa da Vida, que reúne 205 deputados e senadores.
A inspiração para a iniciativa veio de fora. “Nos Estados Unidos, estão colocando o direito à vida desde a concepção nas constituições estaduais. No México também”, compara Nery. A formulação de projetos de lei para despojar as mulheres de direitos sexuais e reprodutivos garantidos por lei segue um padrão que vem se alastrando por diversos países. “Se verificarmos os padrões morais e políticos que acompanham os governos que adotaram a política de encolhimento do estado do neoliberalismo, veremos uma moral muito conservadora e atrelada a questões religiosas com iniciativas muito fortes contra direitos sexuais e reprodutivos. Não é surpreendente, mas é muito preocupante”, diz a procuradora federal dos direitos do cidadão, Deborah Duprat.
No Congresso Nacional, este tipo de atuação se dá de forma mais intensa em dois blocos políticos. Em março de 2019 foi constituída a Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família, presidida pelo deputado Diego Garcia (PODE-PR) e composta apenas por deputados federais. Já a Frente Parlamentar Mista contra o Aborto e em Defesa da Vida, liderada desde dezembro pela deputada Chris Tonietto (PSL-RJ), também reúne senadores. “A frente tem como primordial função a promoção de políticas públicas para a valorização da vida humana desde a concepção”, disse a deputada na cerimônia de lançamento. “O aborto precisa ser algo impensável.”
No plano estadual, a iniciativa que emite sinais de maior intensidade é a Frente Parlamentar em Defesa da Vida, lançada em setembro, em São Paulo, pelo deputado Gil Diniz (PSL). Sessenta e cinco dias depois da instalação da frente, começou a tramitar um projeto do deputado que coloca empecilhos para a realização de um aborto de forma legal e prevê a internação de mulheres “propensas” a fazer um aborto ilegal.
Pelo projeto, a realização de um aborto no Estado, mesmo nos casos previstos no Código Penal, estará condicionada à apresentação de alvará judicial, a ser submetido à Procuradoria-Geral estadual. Caso a procuradoria discorde do procedimento, pode entrar com recurso contra a autorização; se concordar, a mulher terá que aguardar pelo menos 15 dias antes de passar pelo procedimento. Durante este período, receberá atendimento psicológico “com vistas a dissuadi-la da ideia de realizar o abortamento” e será obrigada a acompanhar uma “demonstração das técnicas de abortamento com explicação sobre os atos de destruição, fatiamento e sucção do feto, bem como sobre a reação do feto a tais medidas”. Se a mulher não tiver direito ao aborto legal e demonstre estar disposta a recorrer ao ilegal, a proposta apresentada pelo deputado prevê que se mande interná-la.
A médica infectologista Ivete Boulos, coordenadora do Navis, o Núcleo de Assistência à Vítima de Violência Sexual do Hospital das Clínicas em São Paulo, relata sua preocupação com projetos como esses, que visam retirar direitos e impor mais violências contra as mulheres. “Um deles prevê um retardo de pelo menos duas semanas para o aborto legal. Nesse período, o Governo deve oferecer para a mulher uma psicóloga, que vai trabalhar para dissuadi-la em relação à interrupção da gravidez. Ela vai ver vídeos sobre o que acontece com o feto. É uma exploração do sofrimento da mulher, que chega grávida de um estupro e vai ser chamada de assassina.”
A procuradora federal Deborah Duprat enxerga semelhanças entre a disseminação das frentes parlamentares em defesa da vida e o movimento político Escola sem Partido. “Se analisarmos como foram os projetos e planos estaduais de educação e sua interface com o movimento Escola sem Partido, veremos muita coisa parecida. Algo que surge muito silenciosamente e vai ganhando corpo até isso se traduzir numa avalanche de leis estaduais e municipais.” Seus defensores se dizem contrários ao que chamam de “doutrinação ideológica” nas escolas, num espectro que vai das discussões sobre problemas ambientais às questões de gênero, família e educação sexual. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, os projetos fomentados pelo movimento Escola sem Partido ameaçam direitos humanos básicos.
A partir de 2015, projetos de lei inspirados nesse movimento foram apresentados em câmaras municipais, assembleias legislativas e no Congresso Nacional. Segundo Duprat, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão só teve uma compreensão mais abrangente do que estava acontecendo na educação por meio de mapeamentos de projetos de lei feitos por entidades e associações LGBTQ+, uma população imediatamente afetada pelas restrições contidas nessas propostas.
Na visão de Duprat, a sociedade se encontra diante de disputas que precisam ser levadas ao Supremo Tribunal Federal (STF). “Qualquer iniciativa que torne mais difícil para a mulher o processo de tomada de decisões no caso dos abortos legais ou a constranja no exercício da sua autonomia sexual e reprodutiva é uma questão constitucional, porque atinge o cerne da autonomia, da igualdade e da dignidade da pessoa e precisa ser contestada. Não sabemos qual pode ser a posição do Supremo, mas precisa haver provocação”, diz a procuradora Duprat.
O Supremo não tem o poder de barrar discussões sobre projetos de lei em curso no Legislativo e nem de fazer controle preventivo da constitucionalidade de uma proposta antes que ela seja votada e transformada em lei. “Mesmo em relação às emendas constitucionais, o STF é muito cauteloso. Prefere deixar que elas tenham segmento no Parlamento, para só depois de aprovadas serem discutidas judicialmente”, diz Duprat. Leis de âmbito estadual e municipal também podem ser submetidas à apreciação do STF.
O próprio Legislativo começa a mostrar seu desconforto com a escalada ultraconservadora. No início de dezembro, foi lançada uma campanha institucional para combater a violência de gênero na política. A iniciativa foi proposta pela deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), líder da Minoria, pela Secretaria da Mulher e pela 1ª Secretaria da Câmara Federal e tem o apoio do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Durante todo o ano, a inserção da palavra gênero em comissões, projetos de lei e documentos oficiais gerou turbulências e protestos de deputados radicais religiosos e de direita. O último ataque ao direito ao aborto em 2019 partiu do presidente Jair Bolsonaro. “Dentre as metas da agenda 2030, estão a nefasta ideologia de gênero e o aborto, sob o disfarce de direitos sexuais e reprodutivos”, escreveu em sua conta no Twitter no dia 31 de dezembro, justificando seu veto ao artigo que incluía “a persecução das metas de desenvolvimento sustentável” da ONU entre as diretrizes do PPA (Plano Plurianual) 2020-2023.
Esta reportagem foi produzida com o apoio do Instituto Patrícia Galvão – Mídia e Direitos.