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Na saúde ou na pobreza: Como melhorias tornariam a relação SUS-pacientes mais humana - Mulheres na Comunicação

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Na saúde ou na pobreza: Como melhorias tornariam a relação SUS-pacientes mais humana

Via: Paineira.usp

“Tivemos avanços, mas, hoje, só temos retrocessos. Percebemos que tivemos um ganho, mas atualmente ele está à mercê.”

Maria Auxiliadora se refere ao quadro geral da saúde no distrito de Cidade Tiradentes, no extremo leste da capital São Paulo. Lá, a expectativa de vida chega aos 57 anos, segundo os dados da Rede Nossa São Paulo em outubro de 2019. “Temos muitas unidades de saúde, mas umas delas está sucateada. Inclusive não tem médicos suficientes”, aponta a ativista popular para um dos fatores que acredita influenciar na chegada precoce da morte. Um exemplo da fatal relação entre os problemas não solucionados da saúde pública em um país tão desigual.

Maria Auxiliadora integra o Conselho Municipal de Saúde (CMS) pela cadeira do Movimento Popular da Leste. Além de defender outras causas há mais de 20 anos, atualmente é coordenadora da Comissão da Saúde da Mulher no mesmo conselho. Acompanhando de perto a materialização dos dados na realidade de quem mora no distrito, revela: “falta uma política pública em vários segmentos, principalmente, na questão de empregos. Para a Cidade Tiradentes não tem bancos, nem grandes empresas”. E, na saúde, ela é taxativa: “Estamos cada vez mais sem médicos, porque não querem vir para a periferia. Eles dizem que a região é muito perigosa. Isso recai em tudo, principalmente, para nós mulheres. É muito triste, porque gostaríamos que Cidade Tiradentes cada vez mais evoluísse”.

Mapa da Desigualdade é divulgado anualmente pela Rede Nossa São Paulo. Analisando indicadores e comparando-os entre cada distrito, o estudo aponta os problemas que acentuam as diferenças e possíveis caminhos para os gestores. Além da baixa expectativa de vida, quem mora no extremo leste paulista espera em média 10,58 dias para a consulta com clínico geral. No Programa Saúde da Família, o tempo médio é 4,49 dias, ficando à frente de outros 33 distritos e atrás de 58.

Para Maria, um dos problemas da saúde na Cidade Tiradentes está na forma de ser atendido. “Não temos um atendimento humanizado. Temos um pessoal preocupado em ter quantidade de pacientes, mas não em qualidade. Hoje, nós, usuários do Sistema Único de Saúde, precisamos ser um número e não um ser que merece um atendimento humanizado e de qualidade”.

 

Localizada no extremo leste, Cidade Tiradentes apresenta uma expectativa de vida de 57 anos, mais de 10 anos a menos que a média da cidade de São Paulo. (Mapa: Wikimedia – Creative Commons)

A crítica ao Sistema Único de Saúde (SUS) é para uma melhora. Não para que acabe. Maria Auxiliadora, assim como a professora Maria Inês da Silva Barbosa e o médico Donizetti Dimer, defendem que esse modelo é uma conquista, o que será destacado mais adiante.

Um Brasil sem SUS

Durante os períodos Colonial e Imperial, que perduraram por quase 400 anos, o atendimento médico era exclusividade de pessoas abastadas, como nobres e colonos, que tinham dinheiro suficiente para pagar um especialista e receber os devidos cuidados. A vinda da família real no ano de 1808 marca um período de alguns avanços no país, dentre eles a criação de cursos universitários direcionados para a área médica, como medicina, química e cirurgia.

A esperança para as pessoas mais pobres eram as Santas Casas de Misericórdia. Na ascensão da Igreja Católica, durante o século 16 até o início do 19, essas instituições passaram a ser uma alternativa significativa até o período que antecedeu a implementação do Sistema Único de Saúde. Com a declaração da independência, a capital Rio de Janeiro passa por mudanças estabelecidas por D. Pedro II, como a estruturação do saneamento básico para evitar a proliferação de doenças.

No início do século 20, o país ainda sofria com a falta de infraestrutura sanitária e epidemias.  A chegada dos europeus determinou ações mais efetivas para reverter este cenário, já que o Brasil dependia da nova mão de obra. Assim, as campanhas de saúde se iniciaram através de sanitaristas por todo o território nacional, dentre eles, destacou-se Oswaldo Cruz. A falta de comunicação sobre a importância da vacina desencadeou na famosa Revolta da Vacina.

Na década de 1920, há a criação das Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPS), em que trabalhadores recebiam uma garantia de proteção durante a terceira idade e quando estivessem doentes. A pressão popular durante o governo de Getúlio Vargas fez com que o benefício fosse centralizado no Estado, se dividindo em categorias profissionais e passasse a ser chamado de Instituto de Aposentadorias e Pensões (IAPS). Porém, parte dos recursos acabavam destinados para a indústria, o que fragilizava o atendimento público.

Na Constituição de 1934 surgiram importantes mudanças para a classe trabalhadora: assistência médica, licença para gestantes e a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), que garantia carteira assinada, benefícios à saúde e salário mínimo. Com a criação do Ministério da Saúde em 1953, a população rural passou a receber uma maior atenção das políticas de saúde. Também ganhavam força as Conferências Nacionais da Saúde, que na terceira edição já semeava a proposta do SUS. No entanto, com o golpe civil-militar em 1964, o projeto não progrediu.

Até o fim da ditadura em 1985, o país enfrentou retrocessos na área. O investimento diminuiu, enquanto doenças como meningite, dengue e malária se espalharam. A mortalidade infantil também aumentou. Uma das soluções do governo foi criar o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), que uniu todos os órgãos previdenciários do país. Além disso, projetos privatizantes foram iniciados e os cuidados primários ficaram sob responsabilidade dos municípios, enquanto os casos mais complexos, sob as esferas estadual e federal. A melhor estruturação se consolidou na criação de secretarias de saúde municipais, estendendo para o Estado e a formação de ministérios, como o da Previdência Social e da Saúde.

Nos anos de 1970, surgiu o movimento sanitarista, composto por especialistas da saúde, intelectuais e políticos, que passou a discutir e a disseminar a importância da área e como ela poderia ser mais humanizada. Aos poucos, os ares de renovação chegam aos conselhos regionais de medicina e na criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). Com o fim da ditadura, um projeto chamado de Reformas Sanitárias foi enviado ao legislativo para aprovação, o que resultou na 8ª Conferência Nacional da Saúde em 1986, que contou com a participação da sociedade civil. Ali, documentos formulados foram base para formulação do SUS.

Criação do Sistema Único de Saúde

A Constituição federal de 1988 afirma em seu Artigo 196 que “a saúde é direito de todo cidadão e um dever do Estado”, garantindo o acesso ao serviço de qualidade. Sua implementação no cenário nacional ocorreu em meados da década de 1990. Antes, os trabalhadores que tinham carteira assinada poderiam ser atendidos no Instituto Nacional de Previdência Social. Os outros – trabalhadores informais, desempregados, esposas e crianças – ou pagavam ou entravam nas filas de hospitais públicos. Havia também quem tentava atenção nas Santas Casas de Misericórdia, como explica o doutor Drauzio Varella em artigo no UOL, um dos sanitaristas envolvidos no processo.

O SUS é criado com os princípios de ser um sistema universal e igualitário, garantindo atenção desde os procedimentos primários até o transplante de órgãos. Já seu financiamento e funcionamento são descentralizados, ou seja, contam com a participação das três esferas: municipal, estadual e federal. Segundo o Ministério da Saúde, ele “historicamente aplica metade de todos os recursos gastos no país em saúde pública em todo o Brasil, e estados e municípios, em geral, contribuem com a outra metade dos recursos”.

Mas as fontes ouvidas pela reportagem da Agência Universitária de Notícias (AUN) apontam para as desigualdades nesses pontos: atenção primária, atendimento, descentralização da gestão e até o transplante de órgãos. E quem sente essas desigualdades é quem está mais vulnerável socioeconomicamente.

Uma face nada humanizada

Dos mais de 200 milhões de brasileiros, aproximadamente 150 milhões dependem exclusivamente do SUS hoje, de acordo com o Ministério da Saúde. Os demais utilizam a chamada rede de saúde complementar, os convênios médicos, que cobram mensalidades altas e não oferecem cobertura para diversos procedimentos. Quem não pode arcar com essa realidade enfrenta a falta de médicos e de medicamentos, ficando exposto à má preparação dos profissionais e à discriminação.

Para o médico Donizetti Dimer, o país tem em lei um sistema ousado, mas que na prática aparenta falhas. “Outros modelos encontrados, por exemplo, na Inglaterra ou no Canadá, prometem menos e entregam mais. Há subfinanciamento e questões de má gestão. Faltou planejamento sobre atenção primária e criação de zona de abrangência”.

Dimer, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina e ex-coordenador da Comissão Nacional Pró SUS, considera que uma Unidade Básica de Saúde (UBS) atendendo um grande número de pacientes em pouco tempo, precariza o elo entre médico e paciente. “Esse atendimento encurta a relação e diminui a humanização. É necessário ter tempo e condição.”

De acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), para cada médico havia 470 brasileiros, em 2018. Nas regiões Norte e Nordeste esse número subia para 953,3 e 749,6, respectivamente. No ranking realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), no ano de 2012, a média de consultas foi de 2,8 por habitante, o que fez o país ocupar a 27ª posição de 30 países avaliados.

Em 2017, Brasília tinha um médico para cada 254 pacientes, enquanto no Maranhão, essa proporção subia para 1.374. Nas regiões periféricas, o cenário se reproduz. Em entrevista concedida ao UOL, a empresa RioSaúde, responsável por parte da gerência municipal do Rio de Janeiro, revelou que nos editais de concursos públicos as inscrições são baixas, sendo que a aprovação e o fechamento do contrato apresentam números ainda menores. Mesmo com o salário sendo de R$ 4.071,00 por 12 horas semanais. Diante disso, a alternativa acaba sendo contratar autônomos ou fazer acordos temporários.

Sobre o atendimento de emergência, quem frequenta avalia negativamente. Em 2016, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) realizou uma pesquisa a respeito de 13 serviços públicos e, em uma escala de 0 a 100, a emergência recebeu apenas 20 pontos. Ainda assim, o investimento na área deverá permanecer estagnado com a Emenda à Constituição aprovada naquele ano, em que os reajustes dos gastos públicos passariam ser limitados à inflação do ano anterior.

Apesar de diversos problemas, o SUS é referência no mundo. O Brasil foi o primeiro país fora da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). (Ilustração: Karina Merli)

Uma pesquisa realizada pelo UOL em 2018 mostrou os dez maiores problemas enfrentados por pacientes no sistema. A terceira principal proposta de solução era sobre melhorar a qualidade do atendimento médico, ficando atrás apenas do aumento do número desses profissionais e da redução do tempo de espera para uma consulta. Para Maria Auxiliadora, ativista da Cidade Tiradentes, falta atenção de qualidade aos pacientes. “Hoje, as pessoas vão ao posto de saúde só para trocar a receita. Porque estão tão acostumadas com a demora para receber atendimento, a falta de uma conversa olho no olho, a ausência de sensibilidade, em especial, para perceber que uma mulher, criança ou adolescente sofreu abuso sexual ou violência doméstica”.

Na concepção da ativista, falta uma formação que permita enxergar o paciente como uma pessoa igual ao profissional. No entanto, de acordo com Donizetti, “há humanização da grade curricular. Os cursos de formação definem isso e compreendo como uma adequada relação médico-paciente”. O profissional, que pôde acompanhar a fase pré-SUS, considera o sistema “um projeto, mas não entregue ainda”.

Humano quer dizer considerar aspectos de cada população

Dentro do processo de atendimento mais humano, a professora da Universidade Federal do Mato Grosso, Maria Inês da Silva Barbosa, concorda com Maria Auxiliadora e discorda de Donizzetti Dimer. É preciso compreender a dinâmica e as necessidades de cada população enquanto médico, a fim de ser uma garantia de direitos daquele povo.

“Tem que alterar o perfil de profissionais do campo da saúde. Não há compreensão do racismo como determinante, do que é ser branco. Isso é relacional. Quando discuto pobreza, falo de riqueza”. Maria Inês foi a pioneira na pesquisa entre racismo e a sua relação com a saúde. Seu doutorado na Faculdade de Saúde Pública da USP em 1998 foi a primeira tese a considerar o racismo como um fator determinante no atendimento.

Entre as suas vivências como sanitarista, pode observar uma distorção de leitura. “O acesso ao serviço de emergência não considerava um componente: as polícias faziam o resgate. E não eram casos restritos às ações policiais”. Na região de Interlagos na década de 90, ela constatou a situação de “a população desconhecer o sistema policial e o sistema de saúde”.

Na atualidade, a professora cobra a eficácia do programa Humaniza SUS, onde define-se os princípios e as políticas adotadas por profissionais e por gestores para qualificar a saúde pública. Maria Inês também questiona as formações eficientes na preocupação com as individualidades de cada população. “Alguns temas são considerados e avaliados. São as chamadas abordagens de temas transversais. Quando analisa a proposta de formação, pergunto: como é feita e quem a faz? Qual o perfil do profissional que vai ministrar isso?”

Segundo dados de 2016 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), a população brasileira tem 95,9 milhões de pessoas autodeclaradas pardas e 16,8 milhões autodeclaradas como pretas. “Estamos falando de territórios marcadamente como negros. As relações de racismo e branquitude. O quanto é importante revelar o que acontece na realidade, a relação com raça/cor. Não queremos racializar o sistema, como dizem alguns acadêmicos da área da saúde. Numa sociedade racista, esses dados permitem analisar”.

Desde de 2009, quando foi aprovada, existe a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Sua implementação é justamente uma tentativa de diminuição das desigualdades que afetam e refletem no Sistema Único de Saúde no Brasil, afirmando “a necessidade de reconhecimento do racismo como determinante social na área da saúde”.

Medidas e desejos até aqui para o SUS

Alguns procedimentos de mudanças para o Sistema Único de Saúde foram propostos por consultas públicas do Ministério da Saúde ou colocados em prática por portarias e decretos. Em alguns casos, não tratando diretamente da saúde pública, mas que seus efeitos seriam sentidos nela.

Em 2015, uma proposta de lei ampliava a presença de capital estrangeiro no financiamento de recursos do SUS, que pode receber capital por meio de organismos vinculados à ONU. A proposta foi revogada por um novo projeto de lei, em 2018, que manteve as restrições já definidas pela Lei Orgânica da Saúde.

“Garantir a saúde é um dever do Estado. Mas uma medida assim descaracteriza essa função”, aponta a professora da UFMT, Maria Inês. E também avalia outro impasse no quesito de financiamento que está em vigência. “Existe um desmonte dessas conquistas: a Emenda de 2016 que congela os gastos por 20 anos. Temos que compreender que isso impacta lá na Unidade Básica de Saúde, de alguma maneira.”

Também ocorreu uma mudança no financiamento da Atenção Primária, o atendimento básico para os pacientes. O novo modelo destina mais recursos para aqueles municípios que melhorarem seus indicadores, como anunciado em outubro de 2019 e que entra em vigor em 2020. Um dos componentes para remanejar é a captação ponderada, na qual o repasse é calculado com base no número de pessoas cadastradas. “Os moradores de rua, por exemplo, não têm muitas vezes um cadastro. E também acontece do próprio sistema não ter capacidade de registrar”, questiona Maria Inês. “E vão receber mais recursos conforme as melhoras dos indicadores. São algumas coisas que parecem apontar para uma direção correta, mas são coisa distorcidas”, aponta a professora.

E no mês de maio de 2019, uma nova medida: o Ministério da Saúde informou que os municípios interessados em estender o horário de funcionamento das Unidades de Saúde da Família (USF) poderiam solicitar a ampliação ao Programa Saúde na Hora. Estes, por sua vez, receberiam mais recursos do governo federal dependendo da disponibilidade de equipes de Saúde da Família e Bucal e do horário de funcionamento das unidades, que pode variar entre 60 e 75 horas semanais. A portaria foi assinada pelo Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta no dia 16 do mesmo mês, com o intuito de desafogar as emergências e ter uma Atenção Primária mais resolutiva. Em agosto do mesmo ano, o Ministério abriu consulta pública para apurar sugestões para “a proposta de definição da carteira de serviços essenciais que o cidadão deve encontrar em uma unidade de saúde da Atenção Primária”.

Para Maria Inês, as propostas vão contra o ideal de universalidade do sistema. “Os horários já são limitantes. Agora é por adesão. Ao invés de considerar a necessidade, volto com um modelo racional. Quem tiver recurso, faz. Mas quem não puder… A carteira de serviços à Atenção Primária quer dizer: dou uma limitada nas necessidades da população. É uma carteira básica do que vai ter atendimento, do que vai ser atendido. Mas o acesso é integral”.

A gestão eficiente que se perdeu na descentralização

Segundo a descrição do Ministério da Saúde sobre o SUS, “a responsabilidade pela saúde deve ser descentralizada até o município, ou seja, devem ser fornecidas ao município condições gerenciais, técnicas, administrativas e financeiras para exercer esta função”. Mas quem trabalha ou pesquisa a área da saúde, questiona.

De acordo com o médico Donizetti Dimer, “essa descentralização, virou municipalização, sendo que os municípios não têm capacidade de gestão”. Ele acredita que a divisão nos três níveis da esfera pública acabou por pesar apenas uma das partes para a gestão do Sistema Único de Saúde.

Nesse ponto, a professora Maria Inês também segue a linha de raciocínio do vice-presidente do Conselho Federal de Medicina. “Um aspecto importante é: qual é a gestão do sistema? Avançamos na descentralização, mas o que são esses gestores locais? Estamos no que chamo de política de baixo espectro, que não profissionalizam a gestão. Nos pequenos municípios acontece troca de favores e os gestores não conhecem o sistema. Temos um problema aí”.

Quem recebe órgãos não é quem está na desigualdade

Colocado como um dos maiores feitos do SUS, o transplante também apresenta uma diferenciação e ignora aspectos sociais da população. O mapa do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) do SUS, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) junto com informações da Associação Brasileira de Transplantes, identificou que “a maioria dos transplantes de órgãos, no Brasil, são feitos em homens e em brancos”. Tal situação difere da característica da população brasileira: majoritariamente formada por mulheres, pretos e pardos.

“Nós temos o maior sistema público, que possui lista nacional de prioridades de transplantes. Essa pesquisa mostra que quem mais se beneficia são respectivamente: homens brancos, mulheres brancas, homens negros e mulheres negras”, diz a professora Maria Inês, antes de concluir: “Agora, cruzando com os dados da violência, temos doadores, órgãos de quem morreu, mas quem é negro ou negra não acessa. Essas pessoas vão ao SUS para isso. Mas não está com os exames em dia, muitas vezes. Quem tem os exames em dia? São políticas que garantem acesso, mas não vai ocorrer”.

A especialista, que foi primeira a relacionar cientificamente o racismo com a questão da saúde na academia, confirma sua tese de como esse preconceito é uma cadeia de efeitos de desigualdades. “São dados que permitem a complexidade, não são dados isolados. E têm as consequências disso”.

Como melhorar o SUS

Para que o sistema funcione com a sua proposta horizontal, é importante levar em conta a pluralidade que a população brasileira carrega, o que significa respeitar diferenças étnicas, raciais, culturais e econômicas, como destacado pela professora Maria Inês da Silva Barbosa.

Maria Auxiliadora considera que a forma de fazer com que políticas públicas cheguem à periferia é ofertando moradia popular. “A moradia para as pessoas é como se fosse o início de tudo. Não é apenas a conquista da casa própria, é além… Com isso, a pessoa desejará uma Unidade Básica de Saúde, educação, segurança, transporte. Se não há moradia, tudo falta”.

Para atrair mais profissionais e reduzir essa desigualdade, o vice-presidente do Conselho Federal de Medicina, Donizetti Dimer considera que “é necessário ter política governamental de estímulo, com uma programação e um plano de carreira específico”. Outro ponto destacado é que a Atenção Primária deveria resolver 80% dos casos, o que também implicaria em uma maior aproximação entre médico e paciente. “Se isso fosse resolvido, desafogaria o sistema”.

Dimer também destaca a racionalização dos recursos: “Ter definidas áreas de abrangência com lógicas de complexidade. Então, ter tantas unidades de atenção primária, x hospitais, n unidades básicas, além de ter um eficiente, e parece estar acontecendo agora, sistema único de rastreabilidade dos dados clínicos. Tudo isso para não repetir atos que foram avaliados, o que acontece muito”.

Um desafio a ser enfrentado na saúde apontado pelas duas entrevistadas é a reforma da previdência, que já foi promulgada no Brasil. Segundo sua nova regra, homens se aposentam com 65 anos e mulheres aos 62, mas desde que tenham contribuído por 20 e 15 anos respectivamente. “Essas mudanças na previdência têm um impacto direto na saúde. Um exemplo disso é o Chile, que é citado como modelo por aqui. E a população está reagindo”, diz Maria Inês.

O vizinho sul americano foi o primeiro país a privatizar a previdência. Por lá o contribuinte deposita, obrigatoriamente, 10% de seu salário por no mínimo 20 anos em uma conta individual, para conseguir a tão sonhada aposentadoria. O dinheiro é administrado por empresas privadas, que podem investir no mercado financeiro. No entanto, nem todos conseguem contribuir, perpetuando a desigualdade social. O valor do benefício para 90,9% dos aposentados é de aproximadamente R$694,08, de acordo com matéria realizada pela BBC, já que boa parte do valor guardado fica com as administradoras de fundo de pensão.

Por aqui, em um distrito em que a morte chega antes do 60 anos, Maria Auxiliadora chama a reforma de desmonte da previdência.  “Antes, tinha minimamente uma garantia de um trabalho registrado. Hoje, você não tem esse trabalho. Com o desmonte, temos que trabalhar mais tempo e, cada vez mais, o emprego vai ficando difícil. Porque se tem uma mão de obra mais barateada”. Destacando as diferenças de gêneros, de classes sociais e de formação dos trabalhadores, afirma criticamente: “Percebemos que essa reforma, esse desmonte da previdência, só veio para prejudicar cada vez mais a vida da periferia”.

Com 31 anos de existência, o Sistema Único de Saúde foi um dos maiores avanços na saúde. Porém, melhorias ainda precisam ser feitas. (Ilustração: Pedro Ezequiel)

Mesmo dentro de um cenário nada animador, todas as fontes ouvidas por esta reportagem reafirmam o direito conquistado que é o Sistema Único de Saúde e como ele não pode acabar. Seja nas críticas construtivas de Maria Auxiliadora, que conhece a realidade da saúde pública na periferia. Ou na fala do doutor Donizetti Dimer, ressaltando um estudo entre o Conselho Federal de Medicina junto com a Folha, do ano passado, que mostra a  percepção dos usuários sobre a saúde. A reclamação maior é falta de acesso. Mas todos os que foram ouvidos defenderam e defendem o SUS.

A professora Maria Inês ilustra todo o pensamento e a situação em suas declarações, carregadas com a experiência de quem vivenciou as diversas fases e faces da saúde no Brasil. “É um direito. Uma conquista dos cidadãos e cidadãs, que é dever do Estado. Conquistamos através de lutas diversas e a manutenção passa por isso”.

Por Karina Merli e Pedro Ezequiel

 

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