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Por: Thaís Campolina
Uma pandemia pode parecer um péssimo momento para falarmos sobre machismo, mas não é. A desigualdade, as opressões e os diversos fenômenos relacionados, todos já grandes conhecidos do período anterior ao isolamento social, agora se manifestam de maneira diferente, tornando a pandemia, muitas vezes, um intensificador de vulnerabilidades já existentes. Vulnerabilidades que agora parecem mais invisíveis, ainda que possivelmente mais intensas, que tornam as discussões e as propostas de políticas públicas a respeito urgentes, visto que o isolamento, além de poder agravar certas situações, também afeta o acesso aos serviços essenciais de denúncia e a rotina pessoal de famílias.
A pandemia acentua os problemas sociais que a sociedade encarava até então como parte da normalidade. Os entregadores de aplicativos de delivery, por exemplo, já eram extremamente explorados antes e agora, com a pandemia, são vistos como um serviço essencial, mas continuam sendo pagos como se nada houvesse mudado. Ainda sem qualquer garantia de direito. Ainda como apenas um fator sem nome numa planilha de lucros que agradam acionistas. Com as mulheres não é muito diferente. A exploração do trabalho reprodutivo e doméstico já existia e agora, com muitas famílias em casa, a situação se intensificou. Especialmente nos lares com crianças e adolescentes, onde ainda há a cobrança de manter a rotina educativa e minimamente normalizada. Esse trabalho, ainda mais essencial agora, segue totalmente desvalorizado e ligado ao feminino, deixando mulheres exaustas com algo que poderia ser totalmente dividido, inclusive no quesito carga mental.
Um ótimo exemplo desse fenômeno é a matéria que saiu no site The Lily e apresentou dados que mostram que durante a pandemia as mulheres têm enviado menos artigos científicos, enquanto homens estão enviando até 50% a mais. A sobrecarga do trabalho doméstico para as mulheres é um alívio para os homens que se comportam como se o trabalho doméstico e de cuidado não fosse responsabilidade deles. Eles lucram com essa vantagem, ainda que muitos consideram que dão uma mãozinha, porque eles, ajudando na louça ou não, saem na frente das mulheres que raramente vivem com alguém que divida tudo de forma igualitária.
O trabalho doméstico e reprodutivo segue considerado invisível, ignorado nos cálculos econômicos principais, enquanto a exploração, essencial para a manutenção do sistema, segue colocando homens, principalmente brancos, na frente. Nessa lógica, cabe às mulheres a obrigação de colocar a vida e o trabalho de seus parceiros como prioridade. Seguimos sempre acessórias.
Estar em casa é perceber que o trabalho doméstico não tem fim. Quando uma parte dele termina, como a finalização da lavagem de um banheiro, outra parte dele começa, enquanto a sujeira volta a se acumular. Todos sujam, poucas limpam, sendo esse um serviço sem fim, que deve ser feito a partir de cooperação, mas é colocado como um dever das mulheres que moram ali ou das profissionais de limpeza mesmo durante uma pandemia.
A desigualdade não se apresenta de maneira estanque. A mulher, dentro de uma família, é responsabilizada como a cuidadora do lar, dos filhos e dos demais doentes e vulneráveis, mas isso, no capitalismo, pode existir em outros formatos, como a contratação mal remunerada de babás, empregadas domésticas, faxineiras e até cuidadoras. Se a pandemia fez mulheres como grupo geral trabalharem em dobro dentro de suas casas, ela atingiu de forma especial as mulheres que trabalham com limpeza, especialmente as que prestam serviços para hospitais, supermercados e farmácias ou para a casa de quem é egoísta demais para não dispensar, de maneira remunerada, a faxineira. Essas que são, geralmente, negras e pobres e tem como opção trabalhar ou trabalhar.
Ainda nesse sentido de trabalho e economia, é preciso ressaltar que grande parte dos profissionais de saúde, especialmente quando falamos de técnicos de enfermagem e enfermeiros, são mulheres. Fora as faxineiras, copeiras e atendentes que trabalham nos hospitais, supermercados e farmácias. Há uma certa feminilização de várias profissões que estão muito mais suscetíveis ao contágio, o que, além da possibilidade de contaminação, cria desafios especiais, inclusive financeiros, por causa da necessidade que essas profissionais possuem de se isolar de filhos e idosos que estão sob sua responsabilidade, sendo elas, muitas vezes, as únicas encarregadas pelo cuidado da família.
Outro ponto a ser levantado é que a informalidade atinge mulheres de uma maneira especial, o que contribui para a feminilização da pobreza e a gravidade dos impactos da Covid-19 no momento. Sendo esse fenômeno ligado ao fato de que o mercado de trabalho tende a ignorar mães como contratáveis e a ideia, ainda vigente, de pai de família provedor, que torna homens, ao menos na cabeça de muitos empregadores, mais importantes de serem mantidos como empregados em momentos de crise. Esse comportamento ainda é um padrão, mesmo quando as estatísticas apontam um número para lá de considerável de abandono paterno e famílias chefiadas por mulheres no Brasil e exista um entendimento, que embasa, inclusive, a previsão de regras específicas voltadas para mulheres nos benefícios sociais Bolsa Família e agora a Renda Emergencial, de que dinheiro nas mãos das mulheres ajuda a garantir a segurança alimentar das pessoas ao redor delas.
Toda essa questão econômica misturada com a crise sanitária tangencia um problema ainda mais grave: a violência doméstica. Com homens e mulheres dentro de casa em um contexto que envolve frustração, perda de poder econômico, pressões de todo tipo, dificuldade de acesso aos direitos básicos, medo e, claro, a ideia ainda vigente de que mulheres são inferiores, acessórias, devem obediência ou algo que significa isso aos homens, o número de denúncias de violência doméstica — e também divórcios, que podem pontuar desentendimentos comuns e saudáveis entre parceiros, mas também o fim de relacionamentos abusivos não denunciados — aumentou no mundo todo. Inclusive no Brasil.
O isolamento social intensifica pontos muito importantes quando falamos de violência familiar. Entre eles, merece destaque o fato de que relacionamentos já violentos, com essa proximidade forçada, podem se tornar ainda piores. Até porque a dificuldade de acesso aos serviços básicos de denúncia e atendimento pode ser encarada pelo agressor como uma possibilidade ainda maior de impunidade. A mulher, nessa situação, passa a viver numa espécie de cárcere privado com o seu agressor, o que pode dar um ritmo mais intenso ao ciclo da violência, bem em um momento em que o grupo de apoio dessa mulher não pode sequer perceber facilmente que algo está acontecendo. A vítima perde muito com essa falta de acesso ao mundo exterior: ela encontra obstáculos na hora de denunciar, se sente ainda mais solitária na situação, passa a considerar que não há para onde fugir e, muitas vezes, teme se afastar do lar, mesmo que por pouco tempo, e deixar o algoz junto com os filhos. O isolamento é um obstáculo para o pedido de ajuda. Especialmente quando o seu agressor mora com você.
O que antes separava a mulher da denúncia e a colocava numa situação de silêncio, aumentando a subnotificação, agora existe com um intensificador que envolve um isolamento que muitas vezes pode ser alienador. Nesse contexto, seria muito importante campanhas com a velha pegada do “em briga de marido e mulher, a gente mete a colher” para estimular vizinhos, amigos e familiares a denunciarem, caso suspeitassem de algo. Fora a criação de facilitadores de denúncia em ambientes como padarias, supermercados e até hospitais, como a França fez de acordo com essa matéria.*
O sofrimento das vítimas de violência doméstica não pode ser tratado como invisível, ainda que agora seja mais difícil perceber, por causa das paredes e das portas e janelas fechadas. Essa questão precisa ser encarada de frente. Só que com ou sem pandemia, o Brasil vive um momento em que questões como a violência contra a mulher são tratadas como sintomas de uma suposta degradação moral feminina ou até masculina. A agenda conservadora muitas vezes fala da violência dentro de relacionamentos como uma questão que surge por culpa da mulher ou simplesmente a simplifica, de maneira tola, e pega o que pode ser um desencadeador, como a frustração da perda financeira e o álcool, e coloca como culpados isolados, ignorando o vínculo desse tipo de agressão com o machismo e a misoginia.
A sensação é que o Estado parece ignorar que a situação atual, por ser diferente, precisa de respostas diferentes. Sendo que mesmo na antiga normalidade todo o sistema de proteção das mulheres era frágil demais. Serviços como o do aborto legal, que no Brasil existe voltado para casos de estupro, feto anencéfalo e risco de morte para gestante, sofreram tentativas de pausas em vários hospitais, sendo que nem os estupros e nem as gravidezes decorrentes deles pararam. Também nesse sentido, vale a pena refletir sobre a violência sexual e a possibilidade de aumento da subnotificação e piora ao acesso aos serviços de apoio e denúncia. Estupros maritais, que são parte da violência doméstica, podem ter crescido e o possível acesso facilitado pelo isolamento aos corpos de crianças e adolescentes que vivem com algum abusador é um fator importante a ser lembrado, principalmente porque a escola muitas vezes funciona como um local de possível amparo para muitas vítimas e agora esse contato, antes essencial, se acontece, é via computador e perto do possível agressor.
Os números atuais apontam para uma diminuição considerável de crimes relacionados com a ideia de segurança pública e um aumento daqueles crimes que estão centrados no lar, esse lugar, que apesar de ainda ser visto como um reino feminino, é também onde homens exercem seu poder, muitas vezes por meio da violência e do autoritarismo. Violência que também é voltada contra filhos, idosos e animais domésticos e que também reproduz lógicas como homofobia, lesbofobia e capacitismo.
A pandemia, apesar de ter mostrado a face solidária de muitas pessoas que hoje organizam ações diretas contra a fome e outras questões, infelizmente parece ter sido um catalisador das desigualdades já existentes. Um jovem negro, usando a máscara de pano na face, obrigatória em vários municípios brasileiros, teme levar um tiro da polícia, porque o racismo não tem pausa. Uma mulher, em total isolamento social, teme agora se contaminar e ver toda sua família doente, porque seu marido, seu pai ou seu irmão, seguem desrespeitando as regras de isolamento ainda que possam ficar em casa. Como comumente responsáveis pelo cuidado, a preocupação costuma ser maior entre as mulheres. E a frustração, tão desencadeadora de violência masculina, tende a ser mais perigosa para elas por ter tanta força e significado entre os homens.
Ao falar de pandemia e feminismo, especialmente quando temos Bolsonaro e Trump no poder, tudo que se relaciona com o poder masculino e sua relação com autoritarismo e negligência de cuidados parece ganhar destaque. Essa é masculinidade hegemônica, que ainda é colocada como admirada, e, infelizmente, imitada. É pela força, grosseria e completa falta de empatia que muitos homens se reafirmam como homens. E a casa parece ser o espaço mais acessível para muitos dos caras que ainda enxergam o mundo como deles. Até na negação da pandemia, há uma questão de gênero. Muitos homens se colocam como intocáveis até mesmo ao vírus. Muitos homens são incapazes de cuidar dos outros e de si mesmos. Pedir que eles ajam para proteger a coletividade é muito difícil, porque eles se consideram acima dela. Afinal, é isso que a masculinidade branca hegemônica ensina.
A antiga normalidade agora já é passado. O que vivemos agora é diferente e as políticas públicas e nossas discussões precisam levar isso em conta, até porque tudo indica que o mundo de antes não mais voltará, e agora é hora de trabalharmos o combate da desigualdade a fim de criar uma nova perspectiva. Uma perspectiva que não quer se acostumar em jogar esses problemas para debaixo do tapete só porque eles parecem menos visíveis agora.