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O que é necropolítica. E como se aplica à segurança pública no Brasil

Por: Mariane Ferrari

A pesquisadora Rosane Borges explica como o conceito de necropolítica se relaciona com racismo, a ideia da eliminação de um inimigo e as favelas

Necropolítica é um conceito desenvolvido pelo filósofo negro, historiador, teórico político e professor universitário camaronense Achille Mbembe que, em 2003, escreveu um ensaio questionando os limites da soberania quando o Estado escolhe quem deve viver e quem deve morrer. O ensaio virou livro e chegou ao Brasil em 2018, publicado pela editora N-1. Para Mbembe, quando se nega a humanidade do outro qualquer violência torna-se possível, de agressões até morte.

Aqui, o termo vem sendo usado para falar de políticas de segurança pública, como no caso de Ágatha, que, de acordo com testemunhas e familiares, morreu depois de ser atingida por um disparo de fuzil da Polícia Militar do Rio de Janeiro, estado comandado por Wilson Witzel, que, no discurso e na prática, tem adotado uma conduta de combate e violência na área da segurança.

“A gente vê hoje um Estado que adota a política da morte, o uso ilegítimo da força, o extermínio, a política de inimizade. Que faz a divisão entre amigo e inimigo. É o que a gente vê, por exemplo, nas favelas, nas periferias das grandes cidades brasileiras, nos rincões do país. Nossa polícia substitui o capitão do mato”, analisa Rosane Borges, jornalista, professora e pesquisadora do Colabor (Centro Multidisciplinar de Pesquisas em Criações Colaborativas e Linguagens Digitais) da ECA-USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo), em entrevista à Ponte.

Para ela, discutir necropolítica e segurança pública brasileira é entender que os lugares subalternizados com licença para matar “têm endereço e densidade negra”. “A polícia não toca o terror, como a gente costuma dizer, em espaços considerados de elite”, afirma.

Confira a entrevista:

Ponte – O que é necropolítica e como Achille Mbembe chegou até ela?

Rosane – A necropolítica é a política da morte adaptada pelo Estado. Ela não é um episódio, não é um fenômeno que foge a uma regra. Ela é a regra. E o Achille Mbembe elabora esse conceito à luz do estado de exceção, do estado de terror, do terrorismo. Uma das inspirações dele é o Michel Focault, com a biopolítica. Ele vai trabalhar com o conceito inicial, não contrapondo exatamente, mas dizendo: “a materialização dessa política se dá pela expressão da morte”. O Estado não é para matar ninguém, ele é para cuidar. Que a própria política não é o lugar da razão, é o lugar da desrazão. E isso vai ter um desdobramento nas sociedades contemporâneas. A gente vê hoje um Estado que adota a política da morte, o uso ilegítimo da força, o extermínio, a política de inimizade. Que se divide entre amigo e inimigo. É o que a gente vê, por exemplo, nas favelas, nas comunidades do Rio de Janeiro, nas periferias das grandes cidades brasileiras. Não há nenhum tipo de serviço de inteligência, de combate à criminalidade. O que se tem é a perseguição daquele considerado perigoso. A necropolítica reúne esses elementos, que são reflexíveis e tem desdobramentos que a gente pode perceber no nosso cotidiano, na nossa chamada política de segurança.

Ponte – Segundo o autor, os “mecanismos técnicos para conduzir as pessoas à morte” e a “eliminação dos inimigos do Estado” vem desde os tempos do imperialismo colonial, do período da escravidão. Ou seja, nada mudou de lá pra cá?

Rosane – Nada mudou ou, na verdade, pouca coisa. A gente não pode dizer que nada mudou, mas a gente tem uma concepção de fundo que permanece. Se a gente perceber nossa polícia, ela tem uma vocação empreguista, porque ela substitui o capitão do mato. O capitão do mato tinha a função de perseguir os fugitivos e entregar aos seus “donos”. Com o fim do sistema da escravidão oficializada, a gente tem uma polícia que nasce com essa vocação empreguista. E esse empreguismo e essa perseguição se dá a partir de questões sociais, raciais, de gênero e de território. A polícia não toca o terror, como a gente costuma dizer, em espaços considerados de elite. Ela não invade territórios de elite. Essa é a vocação empreguista e persecutória. É a humanidade subalterna que ela invade, que ela viola. Primeiro mata e depois pergunta quem é.

ecisa falar em justiça, em polícia. Já que tem que ser assim, então, que todo mundo saia por aí no bangue-bangue, matando todo mundo. Se a gente é a favor da lei, não se pode achar que o correto são os policiais matando por aí. Foram 16 crianças baleadas no Rio de Janeiro e cinco morreram só neste ano. É inadmissível. O número de policiais mortos no Rio de Janeiro é uma coisa absurda. Eles também estão morrendo. Quanto menos armas, menos criminalidade, quanto menos, mortes menos criminalidade. É assim que o Estado tem que trabalhar.

Ponte – Racismo, capitalismo e necropolítica são inseparáveis? Sustentavam as mortes do passado e sustentam agora o que o autor chama de “guerras contemporâneas”?

Rosane – Sim, um sustenta o outro. Em uma análise mais estritamente marxista temos o seguinte: aquilo que o capitalismo acha que não serve mais ele abate, porque são corpos negros. A massa sobrante do mercado de trabalho, o que se faz? O que se faz com o contingente de pessoas que não serão absorvidas pela novas competências técnicas e tecnológicas do capitalismo? Se mate, se exclui. Obviamente que essa mesma massa sobrante são corpos negros, mulheres negras, fundamentais para a acumulação de capital. Corpos que foram escravizados e hoje eles não interessam mais para o capital. A análise mais liberal, financeira, está chamando essas pessoas de desalentadas. São pessoas que estão vivendo nas franjas do sistema social, ficando marginalizadas. Nesse processo de marginalização, a gente cria linhas divisórias de nós e outros. E esses outros podem ser alvo de tudo. Inclusive da morte.

Ponte – Algumas pessoas tratam a atual situação do Rio de Janeiro como uma guerra. Essa comparação é equivalente?

Rosane – Eu acho que sim, porque se você trabalha com a ideia de amigo e inimigo, e que você tem que abater o inimigo. Você só trabalha nessa perspectiva se você trabalha com guerra. É a mesma coisa a ideia de guerra às drogas. Você não guerreia com coisas, com objetos, você guerreia com pessoas. O termo “guerras às drogas” é infeliz ao mesmo tempo que parece ingênuo, revela que se trata de uma guerra contra pessoas.

Ponte – Como a necropolítica se aplica na questão poder do Estado, antes exercido pelas colônias? 

Rosane – Do ponto de vista jurídico não somos mais colônias, apesar de nunca termos deixado de ser no ponto de vista político. O presidente fala em ser soberano, que ninguém pode mandar na Amazônia, mas antes de ele ter esse discurso ele foi, em uma perspectiva, colonizado pelos Estados Unidos. O Brasil está escolhendo ser colônia. A colônia tinha uma expropriação do corpo, o corpo que era escravizado, um corpo moeda, objeto. O que permanece é o corpo que é matável. Não é mais estatuto jurídico do escravizado, mas digamos que essa escravização se dá de outras formas. A partir de imaginários, de políticas que definem o normal e o desviante, o bem e o mal, o belo e o feio. A gente vai vendo essas hierarquias se mantendo, o fantasma da escravidão e da colônia é uma presença muito forte. Inclusive orienta políticas contemporâneas. Eu uso sempre o exemplo da violência obstétrica. Uma das modalidades da violência obstétrica é que quando falta anestesia nos hospitais públicos qual é a ordem? Que não apliquem procedimentos anestésicos em mulheres negras, porque se supõe que mulheres negras resistam mais a dor. Da onde que vem essa informação? Da colônia, da escravidão. Por mais que essa regra não seja escrita, ela orienta a política de Estado, porque isso acontece no SUS. É o que se chama de conjunto das regras não escritas, que está no nosso imaginário. Não há comoção porque esse corpo já tem escrito a possibilidade de ser abatido. A gente não vai para a Avenida Paulista, não vai para as orlas de Copacabana.

Ponte – Como você avaliou o discurso de Jair Bolsonaro na ONU nesta terça-feira?

Rosane – Todo mundo está dizendo que é vergonhoso, mas é muito violento. Um presidente que diz que tem que proteger as famílias e as nossas crianças da “ideologia de gênero”, mas é o mesmo presidente que diz que não tem que proteger a família da violência. Quer dizer, a Ágatha morreu na sexta-feira e o presidente vai para a ONU dizer que tem que proteger as crianças da perversão sexual? É violento, é desrespeitoso com os pais daquela criança. Ou seja, ele não respeita família nenhuma. Não se solidarizar nesse momento com o que é a tragédia da morte da Ágatha é de uma violência extrema.

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